Um dia como tantos outros
Depois de uma noite bem curta, passada a batalhar com grilos barulhentos -- estamos novamente na estação destes bichinhos bem vocais --, mais o acordar com o estrondo de uns trovões secos, segui para Abéché. Um voo matinal, que queria estar de volta ainda durante a hora do almoço. Uma hora e meia para cada lado, que o nosso Learjet está em Nairobi, para manutenção.
Em Abéché, o prato forte era uma reunião com a coordenação das ONGs humanitárias. Queriam apresentar-me um documento que deveria definir a sua posição face à MINURCAT, a missão de manutenção da paz da ONU nestas paragens. A preocupação das ONGs é a de manter a sua independência, neutralidade e imparcialidade. No nosso caso, não deveria ser muito difícil, até porque a Missão não é parte em nenhum conflito. Não estamos entre o governo e, do outro lado, os rebeldes. Estamos aqui para proteger o trabalho humanitário, contra os bandidos e outros salteadores de estradas. E proteger os direitos dos refugiados e deslocados.
Mas o fundamentalismo de certas ONGs é tal que, mesmo no nosso caso, acham que devem manter uma distância que se note. Não querem botas perto das portas das suas sedes. Pois muito bem, disse-lhes. Continuaremos a fazer o nosso trabalho de segurança. Quem não quiser beneficiar das nossas escoltas, tem toda a liberdade para o fazer. Pode, no entanto, estar certo que em certas áreas da fronteira com o Darfur, andar só é o mesmo que andar à procura de problemas.
É um debate que vai continuar. Penso que não devo deixar de chamar a atenção das ONGs para os riscos que correm.
Estive de seguida com o novo Governador da Região do Ouaddai, de que Abéché é a capital.
Disse-me que o Presidente lhe confiara três grandes tarefas. Combater o crime violento na cidade. Resolver o problema da falta de água. Controlar os refugiados. Nada fácil, enquanto agenda de trabalho. A criminalidade é um grande desafio à autoridade do Estado. Há gente armada por todos os cantos, e muitos cantos escuros. A polícia local não ganha para o petróleo e não tem dinheiro para o gasóleo. O abastecimento de água, numa cidade do deserto que vê a sua população crescer todos os dias, é feito a partir de furos situados a dezenas de quilómetros da cidade, por canalizações que já não existem. A água é bombeada, mas não chega ao destino, o depósito central da cidade. Os refugiados são gente viva e difícil de controlar. De vez em quando, um ou outro cai nas malhas, mas as razões da detenção acabam por ser difíceis de explicar. Mais um espião ao serviço do Sudão, dir-se-ia...
Voltei para a capital a tempo de conseguir fazer libertar um avião de carga com 89 toneladas de material de furagem. Havia chegado de manhã, directamente de Oslo. As autoridades aeroportuárias não queriam aceitar os nossos documentos de isenção de taxas. Pediam 90 mil dólares de impostos vários, a serem pagos cash, no momento, antes de deixar o cargueiro prosseguir o seu rumo. Metemos uns ministros ao barulho, ameaçámos chamar a Noruega para a rixa, e finalmente, tudo ficou como seria de esperar. Vamos ter o material, que terá agora que ser transferido para o Leste. E o avião vai poder voltar à Europa.
Já ao fim do dia, foi a vez de uma série de reuniões sobre a situação na República Centro-africana. Desmobilizações e eleições. Mais umas chamadas para Nova Iorque. A sede não havia lido o nosso último telegrama sobre as relações entre o Chade e o Sudão, e estava a preparar-se para fazer umas declarações incorrectas, no Conselho de Segurança. Teria sido mau.
A vantagem de dias assim é que não dão para ver o telejornal da RTP.