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Copyright V. Ângelo
A isto se chama necessidades básicas. Faz-se o que se pode como se pode.
Tirei esta foto no campo avançado do contingente de capacetes azuis provenientes do Gana, numa zona da nossa área de operações em que os perigos têm sido grandes. É uma região perto da fronteira com o Sudão, a alguns quilómetros da cidade sudanesa de El-Geneina. O campo tem condições de vida muito rudimentares, como a fotografia revela.
Os homens são bravios nestas terras. Bandidos de grande porte e rebeldes de todas as cores circulam pelos caminhos áridos e rochosos. Para que os nossos soldados possam fazer as suas necessidades em paz é preciso muita vigilância.
No dia em que o rato subiu ao poder, devido ao acaso das circunstâncias, começou a comportar-se como um leão. Ou pelo menos, a pensar que estava a agir como um verdadeiro rei da selva. Cada palavra que resmungava soava-lhe como um rugido, quando na realidade era a apenas uma irritação verbal para os outros animais das redondezas. Cada exigência que berrava, e que lhe parecia ser um direito decorrente da posição agora ocupada, era vista como mais um indicador que um roedor nunca se poderá medir com um felino puro sangue. Acentuava o ridículo da situação. E para que todas se convencessem da sua real importância, passava horas a discursar palavras impossíveis de penetrar.
A zebra, na sua sabedoria de animal que já havia escapado a leões de verdade, passava-lhe ao lado, com a calma de quem sabe que um rato, por mais ratão que queira ser, não é mais do que um pobre diabo que gostaria de ser levado a sério.
Copyright V.Ângelo
Este foi o meu carro blindado, durante dois anos, em N'Djaména. Um carro que estava muito associado à minha pessoa. Que só saía comigo.
O meu motorista, Ousman Aballi, um Chadiano, foi treinado em Washington. Aprendeu a conduzir em situações de risco. Manteve sempre uma relação muito profissional com a equipa do GOE. E, tendo ouvido algumas conversas, que há quem goste de falar enquanto está a ser conduzido, foi sempre muito discreto, fingindo que não ouvia. Um homem grande. Um senhor de silêncios, que é uma das características de quem tem dimensão.
Hoje e amanhã estou de férias, agora já em terras europeias. No começo da semana que entra, tenho que terminar o relatório de fim de missão, despachá-lo para Nova Iorque e acertar as datas de uma pequena estada de despedida na Sede. Nova Iorque, Nova Iorque. Assim se fecha o capítulo principal da minha vida profissional, várias décadas de trabalho com a ONU, nas áreas do desenvolvimento, da ajuda humanitária, da política e, nos últimos anos, da segurança e da paz. A partir de agora, poderão surgir algumas ocasiões de colaboração pontual, mas nada de permanente e de longo prazo. Já chega. Há que deixar espaço para que outros o possam fazer.
Assim é a vida. Só posso dizer que tive sorte. Foi uma experiência muito variada. Com muita substância. A dar-me uma visão mais ampla do estar no mundo.
Entretanto, entre outros projectos, vou começar a minha colaboração com o Conselho da Europa. A tempo parcial. Farei parte de um pequeno grupo de reflexão, uma coisa nova, oito pessoas, quatro europeias, quatro de outras culturas. Iremos fazer propostas, que se querem inovadoras, sobre as relações entre a Europa e os países do Sul. Incluindo num domínio pouco estudado, as questões da juventude. Dar outras perspectivas aos jovens, em particular aos das margens Sul do Mediterrâneo, para que tenham oportunidades sem que necessitem de sair das suas terras e emigrar.
Prometo, também, que vou expandir a minha produção escrita. Mais textos, mais reflectidos, mais investigados. Mais intervenção.
Conto com os meus amigos, claro.
A minha vida muda esta noite. Entro no avião em N´Djaména, saio na Europa, amnhã ao madrugar. Out of Africa. É um viagem que deixa para trás décadas de trabalho em África. E que me leva para novas aventuras, no Continente por explorar que é a Europa.
Muito interessante.
É um iniciar de uma nova vida. Desafios, que o velho combatente não gosta de tréguas.
Escrevo sobre a NATO na Visão de hoje. O plano é, aliás, escrever regularmente sobre questões de defesa e segurança. Sobretudo numa altura em que a reflexão sobre o futuro estratégico da Organização está em curso.
O texto encontra-se disponível no sítio:
http://aeiou.visao.pt/o-outono-da-nato=f552974
Boa leitura.
Mais uma série de discussões, muito diplomáticas, palavras, palavras, cuidado com as palavras, o embaixador chinês a ver em mim um diplomata de excepção, e eu a pensar no trapézio, nos equilíbrios, na relatividade da política, num mundo povoado de gente razoável. Sabem onde fica?
Fiz mais um discurso de despedida, ao corpo diplomático e aos chefes das agências das Nações Unidas, a tentar não repetir o que já disse várias vezes, teve lugar na residência oficial do PNUD, um casa bela, árvores grandes, à beira do rio Chari. Foi uma maneira muito simbólica de dizer as palavras da partida, eu que fui representante residente do PNUD durante duas décadas, noutros sítios, noutras vidas, com um sangue mais vermelho, nessa altura.
Tudo isto pede muita paciência, que negociar é uma aprendizagem contínua sobre o controlo de nós próprios e das circunstâncias. É ficar calmo quando tudo nos enerva, pensar no horizonte quando nos querem fazer tropeçar, ter a coragem de calar quando querem que gritemos a nossa raiva.
Ao fim do dia, para além do cansaço, fica a impressão de que voar bem acima das copas das árvores é a melhor maneira de não esmagar o bico no chão. É uma sensação de voos para destinos mais longínquos, mais do que um sentimento de alívio.
Jantei com o Eduardo e a Jirina, a meio quilómetro de casa, um casal extraordinário, luso-checo. Como sobremesa, ofereceram-me um livro de poemas do Eduardo, ilustrado pela Jirina, um presente de grande beleza, muito delicado, como todas as obras de amor.
Deu para esquecer o longo discurso que fizera, esta tarde, aos polícias e aos gendarmes do Chade, na parada da Academia de Polícia, um rio de palavras vindas da emoção de ter trabalhado muito estreitamente com estes homens e mulheres muito corajosos. O que não me impediu de lhes pedir que conduzam os veículos da polícia mais devagar. É que são peritos em causar acidentes. Só hoje, entre o nosso campo e a Academia, meia dúzia de quilómetros, conseguiram espatifar dois dos novos todo-o-terreno que lhes havíamos dado. No Leste, ao lado de cada comissariado existe um pequeno cemitério de viaturas acidentadas, que os meus gendarmes, aqui nesta terra, têm o pé pesado e a cabeça leve.
Deu também para pôr de lado as longas discussões diplomáticas do dia, em que se discutiu o futuro da missão de manutenção de paz. Devo acrescentar que a linguagem do governo evoluiu bastante. Talvez seja um sinal positivo. Isto de linguagem de governos é sempre difícil de interpretar. Mas certas palavras, quando deliberadamente escolhidas, são setas, com mensagens que vão direito ao alvo. Há Sol, depois de tantos dias de tempestade de areia. Esta é a verdade.
Hoje foi um dia tão cheio e variado que até acabei por discutir vestuário, apresentações, saias e calças, escolhas, decisões, a melhor maneira de se apresentar quando o momento é de grande significado. É que a roupa, o estilo, a cor e a escolha desta ou daquela peça têm muito simbolismo. E, nós, os velhos diplomatas, vivemos à volta de símbolos. Passamos horas a bater com a cabeça nas paredes, para tentar perceber o valor de um casaco, a leitura a dar à cor de um vestido, a relevância de uma saia, o significado de um fato.
Felizmente que alguns dos nossos deputados, em S. Bento, vão para o Parlamento como se fossem às favas.
A poeira entrou no nosso quotidiano. Vive-se com a obsessão do pó. A vida sabe a areia. O cheiro, é como um perfume seco que nos fecha as narinas e nos impede de respirar. Está tudo seco e meio parado, que este clima não dá para grandes saídas.
Entretanto, perto da minha residência, pelas 19:00, uma das nossas funcionárias foi bloqueada por um veículo de salteadores armados. Para roubar o carro, propriedade da ONU. Um todo-o-terreno, muito procurado, fácil de vender. Mais um veículo que se foi. Os bandidos começaram agora a perceber que é fácil atacar em N'Djaména e não se ser apanhado. É uma cidade com milhares de cantos, impossível de controlar. Um labirinto de areias deslizantes. Um pesadelo, em matéria de segurança.
As forças de reacção rápida da minha Missão chegaram ao local uns minutos depois. Mas o que a colega queria era apoio psicológico. Foi uma experiência de meter medo.
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