O Serviço Nacional de Saúde (SNS), visto donde eu me situo, funciona bem numas coisas e muito mal noutras. E quando um sistema tem muitas imperfeições, acaba por ser injusto: são os que têm menos poder económico e os pobres que sofrem mais com as falhas do sistema. Em Portugal, estar doente e ser pobre ainda é uma tragédia.
Assim acontece no nosso país. Quem não tem dinheiro nem cunhas, fica para trás e será atendido quando o for e, tantas vezes, sem a atenção necessária. Intervenções que, noutros países europeus, seriam feitas sem demoras, ficam meses por fazer, no nosso caso.
Mas, curiosamente o nosso SNS parece ser uma vaca sagrada. Todos o veneram e ninguém ousa contestar a sua ineficácia e as injustiças que lhe estão subjacentes.
A prova de avaliação que o governo quer impor aos professores que ainda não pertencem ao quadro das escolas estão marcadas para 18 de novembro. A classe professoral está contra essa medida e resolveu decretar uma greve geral e mais outras manifestações de desagrado.
Não me cabe fazer aqui um comentário sobre o assunto. Quero, no entanto, contar o que me aconteceu há uns anos e que tem, no fundo, algo de semelhante.
Em 2002, estava colocado no Zimbabué como representante da ONU. Tinha uma pasta bastante complexa, que misturava desenvolvimento, coordenação humanitária e responsabilidades políticas. Era, nessa altura, um dos representantes com mais experiência e senioridade, com competência demonstrada em vários sítios enquanto chefe de missão. Tinha, como poucos, um vínculo permanente com a organização. Isso não impediu Nova Iorque de me aplicar uma regra que havia sido iniciada uns anos antes – eu havia sido um dos promotores desse princípio, mas que na altura só se aplicava aos novos representantes. A regra era simples. Tinha que passar por um exame de avaliação, como todos os outros o já haviam feito.
Protestei, fiz valer os meus galões de D2 (director sénior). Em vão. Lembraram-me que eu era dos raros que ainda não haviam passado por esse teste e que tinha que o fazer, sem mais discussão.
E lá foi marcada a coisa. Só que o teste era um teste a sério, feito por uma empresa do Canadá. Passava-se em Londres e decorria de um domingo à tarde até quinta-feira ao fim do dia. Era um exercício complicado, que misturava jogos de liderança com análises de casos concretos, simulações de entrevistas na televisão com um profissional da matéria, e duas ou três apresentações públicas.
Perguntei o que me aconteceria se não tivesse sucesso no teste, no entender da empresa que me avaliava. A resposta foi clara: a sua carreira de representante da ONU termina aí!
Assim mesmo!
E mais. Havia dois ou três escalões de classificação positiva e, em virtude do meu nível, teria que ficar no primeiro. Essa era a única expectativa possível.
Devo confessar que o teste foi extremamente difícil. Cheguei a Londres no domingo de madrugada, depois de uma noite a voar de Harare para o destino. Como o primeiro briefing do teste só tinha lugar às 17:00 horas, resolvi aproveitar a manhã e o começo da tarde para ir visitar a minha filha mais nova, que estudava então na Universidade de Bath. Quando voltei, tinha à minha espera a primeira etapa: ler cerca de 200 páginas de documentos confusos e intragáveis, para poder responder, ao começo da manhã seguinte, por escrito, a três ou quatro questões de fundo.
Passei o serão e uma boa parte da noite de volta dos papéis.
No final, depois de bem avaliado pelo júri, disseram-me que afinal eu entrava no primeiro escalão dos competentes. Que alívio! E que surpresa, acrescentei eu, pois há cerca de uma década e meia que eu, na prática, já estava entre os mais conceituados.
Atenção: dos quatro colegas do meu grupo, dois não passaram.
Se eu voltasse a ter vinte cinco anos hoje, que destino daria ao meu futuro?
Trata-se, claro, no meu caso, de uma pergunta absolutamente teórica. Os anos da juventude já passaram há muito tempo.
Mas, para quem é hoje jovem, a pergunta tem todo o cabimento. E mais ainda, para quem tem ambição, força de vontade e capacidade para fazer coisas.
A resposta dependerá de cada um, obviamente. Aqui não há respostas gerais, one size fits all, a mesma medida para todos. O meu conselho é, no entanto, muito simples: quando se é jovem, vale a pena pensar grande e sair da nossa zona de conforto. Ir mais além leva-nos longe.
O Conselho de Ministros português acaba de aprovar a criação de um “banco de fomento” e eu devo ser o único cidadão que vem publicamente dizer que não concordo. A economia nacional, que já é demasiado reduzida para os bancos que temos, não precisa de mais um banco. Ainda por cima, de um banco que não corresponde a um desenvolvimento comercial ou a uma decisão empresarial, mas isso sim, uma nova instituição burocrática, só com sede e sem balcões. Um “banco” que não é banco mas sim política e que vem financiar, segundo diz o governo, as PME, quando essa mesma linha de crédito para as pequenas e médias empresas poderia ser administrada pelos bancos existentes, dentro de regras claramente estabelecidas e sem novos encargos administrativos, novos tachos e outras mordomias. Esta é, uma vez mais, uma visão burocrática da economia, que serve apenas para fingir que se tomam novas iniciativas.
Claro que também serve para empregar mais uma série de fiéis membros dos partidos no poder.
Passei uma boa parte da última semana em Adis Abeba. Cada vez que volto à capital da Etiópia sinto como que um regresso ao passado. Foi aqui que comecei, em Julho de 1978, o meu percurso africano. Mas, para além do simbólico, a cidade reflete as contradições de um regime político que teve a sua justificação na história distante de há três décadas e que agora tem medo de encarar um futuro que o pode pôr em causa. Ora, aqui como noutras partes de África, os riscos são reais: um crescimento populacional fora de controlo - 37 milhões de habitantes em 1978, mais de 86 milhões atualmente, sem contar com a população da Eritreia, que se separou da Etiópia em 1991; uma economia em expansão rápida, mas muito desigual e profundamente afetada pela burocracia e pelo nepotismo; um peso crescente das comunidades ligadas ao Islão, numa terra que ainda pretende apresentar-se oficialmente como sendo maioritariamente cristã; e as aspirações democráticas da juventude urbana, que quer viver numa sociedade liberta da opressão política. Andar com as costas viradas para o futuro, lá como cá, leva a uma caminhada incerta e aos tropeções.
Muito desta minha estada teve que ver com a União Africana (UA). Adis Abeba, ao acolher a sede da UA - instalada num magnificente edifício, inaugurado em 2012, construído e oferecido pela China -, continua a ser a porta de acesso político a África, como fora a minha porta de entrada no Continente. Porém, uma vez mais, o simbolismo é maior do que a realidade. Hoje sob a direcção de Nkosazana Dlamini Zuma, militante histórica do ANC e ministra dos governos sul-africanos pós-apartheid, a UA é uma instituição reconhecida mas com pouco poder. Quem manda em África são os chefes de Estado. Quando é preciso ir além das fronteiras nacionais, os líderes preferem entender-se no quadro das organizações sub-regionais, com destaque para a SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral) ou para a CEDEAO, que agrupa os Estados da África Ocidental. A cooperação entre vizinhos vale mais do que uma ambição do tipo continental. Nem sempre é fácil, reconheço, mas acaba por dar resultado.
Perante isto, dei comigo a divagar ao longo de duas linhas.
A primeira tem que ver com a relevância das instituições. Existem por aí muitas estruturas que se tornaram irrelevantes. Assim tem acontecido com várias organizações internacionais, com centros académicos de reflexão, partidos políticos e mesmo com países que outrora haviam sido determinantes. Sempre tive a preocupação de me interrogar sobre a pertinência de cada uma das instituições a que estive ligado. Dizer que ninguém nos ouve, que a culpa é dos outros, não resolve o problema. Num mundo em mutação contínua, quem fica parado, no seu canto, deixa de contar. As estruturas que não têm impacto, ou que têm apenas uma justificação burocrática, estão condenadas a desaparecer. Ou então, ficam apenas a fazer parte de um cerimonial protocolar sem substância.
A segunda divagação tem que ver com a Europa. Talvez fosse altura de aprender a lição que a África nos ensina. Ou seja, pensar numa integração de proximidade entre os países da UE, criando dois ou três grupos sub-regionais. Cada grupo aprofundaria a união à sua maneira e ao seu ritmo, dentro dos parâmetros gerais que tivessem sido aceites por todos. Trata-se, de certo modo, de estender a experiência do Benelux a outros cantos da Europa. O nosso lado da Península Ibérica poderia ser um bom ponto de partida.
Tem-se falado muito e repetidamente da imagem externa do nosso país. Muitas vezes, apenas para dizer que a imagem não é boa e que tem tendência para ir de mal a pior. Há uma espécie de prazer masoquista nessa maneira de encarar a questão. Nalguns casos, até parece uma prova de inteligência: quem fala nessas coisas acha-se mais vivo que os outros.
É verdade que nalguns círculos a imagem não é das melhores. Mas, no conjunto, a minha experiência e os meus contactos com círculos exteriores levam-me a dizer que existem muitos aspectos positivos associados à nossa imagem no estrangeiro.
A grande maioria dos nossos emigrantes, portugueses espalhados por muitos recantos do mundo, dá provas de grande capacidade e muita aplicação ao trabalho. São, além disso, gente pacífica e respeitadora das leis das terras que os acolhem. Funcionam como um bom espelho de todos nós. Por outro lado, alguns conseguiram distinção e nome, nas áreas profissionais e artísticas em que se inserem. Temos, lá fora, excelentes cientistas, gestores, académicos, quadros de alto nível e outros. E criativos de renome.
Mas mais ainda. Apesar da crise e dos sacríficos dos últimos anos, os portugueses que ficaram em Portugal têm dado mostras impares de resiliência e de paciência. A mensagem que transmitem para o exterior é muito clara: não nos deixamos vencer pelas dificuldades. Ou, dito de outra maneira, estamos a demonstrar que a crise não significa perder as estribeiras e cair no caos. Há crise, procuram-se soluções!
E este tipo de postura é muito apreciado por quem reconhece que o país tem valor. Sim, pelos amigos estrangeiros, que continuam a ter uma imagem positiva de nós. Há que não esquecer essa realidade.
A crise de liderança no Banco Espírito Santo (BES) e os resultados negativos que a maioria dos bancos portugueses tem estado a acumular em 2013 mostram a fragilidade do sector financeiro privado no nosso país. É de prever, num prazo não muito distante, uma reorganização a sério do sector. Temos bancos a mais para economia que existe. E esses bancos têm uma carteira comercial apinhada de créditos malparados, de projectos inviáveis e de empréstimos de longo prazo numa conjuntura que requer operações rápidas, fluidez e maleabilidade.
A fusão entre bancos é inevitável. A prazo, o panorama bancário nacional deverá estar concentrado em dois ou três bancos e pouco mais. Mesmo esses terão uma solidez relativa. Se os testes de stress do Banco Central Europeu forem feitos a sério – o que não aconteceu há dois anos – a pressão sobre a banca portuguesa será ainda maior.
Há medo de falar destas coisas. Mas esta é uma das questões de fundo que deveria estar no centro dos debates sobre o período pós-troika.
O vice-presidente do PSD, que também faz de porta-voz nacional, deu hoje uma conferência de imprensa para desvalorizar as declarações de um ministro bacoco. Foi um exercício fútil. As declarações desse ministro não precisam de ser desvalorizadas: estão, logo à partida, vazias de valor.
Um especialista em matéria de segurança, antigo colega meu das Nações Unidas, dizia-me há dias que o Sahel é terra de contrabandistas armados. Como qualquer bom velho contrabandista, os que percorrem o Sahel fazem “negócio” com tudo o que lhes passa à mão de semear: armas, drogas, candidatos à emigração ilegal, raptos, tráfico de gado, tabaco, combustíveis e bens alimentares. Um grupo ou outro mistura uns pós de fanatismo religioso ao ”negócio”, como maneira de lhe dar uma “justificação moral”.
Os montantes em jogo são elevados. No caso recente da libertação de quatro franceses que estavam sequestrados no Níger há cerca de três anos, fala-se num resgate na ordem dos 20 milhões de euros. É um montante impressionante, que mostra bem o que está em jogo.
Mas a verdadeira ironia da situação reside no facto de uma parte desse dinheiro se destinar à compra de armas e veículos que irão permitir aos bandidos raptar mais franceses e atacar as tropas francesas e internacionais que se encontram em missão no Mali.
A violência que define o discurso político de hoje em Portugal não faz mais do que confirmar uma velha constatação, que resulta da análise feita a muitos conflitos: os piores ódios e as maiores barbaridades surgem nas guerras e disputas civis, entre gentes da mesma terra. O vizinho é, em caso de crise nacional profunda, ou o maior aliado ou o pior inimigo. Nestas coisas, só há extremos.
Seria bom que pensássemos nisto a sério. As divisões entre nós estão tão radicalizadas que recomendam que se ponha água na fervura. Só com tolerância e diálogo social é que se sai da crise. O resto é radicalismo cego e fascista, totalitário de um lado e do outro.