Mão amiga fez-me chegar um folheto informativo sobre as alterações ao Código da Estrada em Portugal.
Mas a vida tem coincidências que não dão para entender.
Nesse mesmo dia, eu recebera das autoridades da autarquia local onde resido, a comuna de Schaerbeek em Bruxelas, a carta de condução belga e uma licença internacional também de condução. Demoraram cinco dias para emitir ambos os documentos, sem que fosse necessário preencher qualquer formulário – o funcionário autárquico limitou-se a marcar umas cruzes num impresso pré-preenchido – nem algum exame médico. Foi-me apenas pedida a carta portuguesa, uma fotografia para a licença internacional e 46 euros. Tempo de espera para ser atendido, de ambas as vezes: um minuto. Mais. A carta belga é válida por dez anos, apesar da idade avançada que a minha cara mostra.
Depois, comparei tudo isto aos procedimentos burocráticos portugueses, em que a renovação da carta é uma espécie de passagem pelo inferno. E agora, até quem atinge a idade madura dos 30 anos terá que passar por uma bicha, pagar uma taxa e levar um papel novo, que chegará quando chegar.
Sem esquecer que agora é preciso andar com o cartão de contribuinte junto à carta, a não ser que já se tenha o cartão de cidadão. Deve ser para ver se pedimos factura quando dissemos meia dúzia de palavrões contra a burocracia que emperra os serviços públicos portugueses.
Dir-se-ia que estamos a ficar com a memória curta. Vivemos fechados no gulag do imediato, prisioneiros que somos da actualidade que nos é imposta e nos deixa sem espaço mental nem curiosidade suficiente para colocar os acontecimentos importantes numa perspectiva de longo prazo, numa linha que deveria ligar o passado ao presente e ao futuro. A informação disponível é muita, os factos invadem-nos o quotidiano, vertiginosamente. E saem também com rapidez, expulsos por outras notícias. Não obstante, creio ser inquestionável afirmar que o nome de Nelson Mandela ficará na História.
Quando era inexperiente, tinha ideias claras e batia-me pela revolução. Agora, depois de ter percorrido o mundo, acho que tudo é bem mais complexo do que parece.
É verdade que convém lutar contra a burocracia e os totalitarismos, mas sem ser preciso partir a loiça. Basta ter firmeza de caracter, paciência para manter a conversação e meia dúzia de objectivos fáceis de explicar.
A raiva e amargura não são boas conselheiras. Levam, tão-somente, à violência e fractura social. Puxam-nos para trás, numa altura em que muitos outros procuram acelerar para a frente. Destroem valor, quando precisamos de acrescentar riqueza.
São, na realidade, traços de falhanço social e indícios de que estamos a enterrar-nos numa sociedade de areias movediças.
Quem não consegue imaginar o futuro passa o tempo a recriar o passado.
Assim nascem os saudosistas e assim se inventa a história.
E quando se torna verdadeiramente difícil ter ambição em relação ao futuro, inventamos um passado que nos dê a satisfacção, que compense a frustração que sentimos quando olhamos para o tempo à nossa frente.
Uma sociedade em crise gera mais saudosistas e nacionalistas tresloucados do que criadores de futuros. Produz mais revolta do que esperança.
No calor do debate em curso, sobre o Partido Socialista, as divisões no seu sei, as opções políticas, à esquerda ou à direita, alguém me perguntava hoje se seria possível pensar numa coligação dos socialistas com um ou dois partidos à sua esquerda. A resposta é simples: ser possível, claro que é. Se os resultados das próximas eleições o justificarem e se houver vontade e acordo entre os dirigentes dos partidos em causa, a possibilidade existe.
Trata-se, contudo, de uma possibilidade teórica. Não vejo a direcção socialista actual encarar uma tal hipótese. Também não consigo antecipar um acordo sobre um programa comum. E não acredito que o nível de confiança entre esses partidos seja suficiente para que possa permitir um entendimento e um mínimo de boa-fé entre eles.
Assim, as próximas eleições só podem levar a uma de duas: ou um dos paridos ganha uma maioria absoluta, ou então terá que haver uma coligação com a direita ou à direita. A maioria absoluta deveria ser o objectivo a atingir. Mas parece-me muito improvável. Resta-nos uma coligação à direita, o que no caso de uma vitória em minoria do PS acabaria por trazer o Paulo Portas de novo ao governo.
Paulo Portas, ouviram bem?
Teríamos então um PS preso às manhas políticas de Portas.
Está em curso uma nova vaga de ataques à liderança de António José Seguro. Quem deu o sinal da abertura da caça foi Mário Soares, com a referência envenenada à percentagem de 90% de intenções de voto, que seria o patamar de apoio do eleitorado, caso a direcção do PS fosse mais dinâmica. Desde então, têm surgido várias declarações públicas, a favor e contra. Mostram, sobretudo, que temos um PS com vários centros de comando e interesses divergentes.
Perante isto, que deve fazer Seguro? Continuar a falar por interpostas pessoas, incluindo Vitorino e Correia de Campos, que escreve um artigo no Público de hoje que vale a pena ler?
Acho que não. As opiniões de gente conhecida que o apoia são importantes e devem continuar a ser expressas. Mas ele, enquanto Secretário-geral do partido, tem que vir à arena. Tem que pôr os pontos nos is e denunciar o jogo de quem está a minar a autoridade da liderança.
Um verdadeiro líder faria assim.
Fingir que não vê e que não é nada com ele não é sustentável. A prazo, esse tipo de postura acabará por lhe custar o lugar que ocupa.
Nem sempre estou de acordo com a jornalista Teresa de Sousa, mas é certamente uma profissional que merece todo o respeito. E que vale a pena ler, sobretudo as suas crónicas de domingo, que aparecem todas as semanas no Público.
Recomendo a reflexão de hoje, sobre o estado da social-democracia na União Europeia de agora. Na verdade, o futuro político da social-democracia levanta muitas interrogações.