Escrevendo sobre Putin e a Rússia
Escrevo no primeiro número de 2014 da Visão, que agora está à venda, um texto sobre Putin e a Rússia.
Putin foi, em grande medida, o homem político do ano 2013. E vai continuar a dar que falar, neste ano novo.
O texto pode ser lido através do link:
Também o ponha à disposição do leitor nos parágrafos que se seguem.
Putin, nós e o futuro
Victor Ângelo
2013 terminou com meio mundo a falar de Putin. A catástrofe política e humanitária na Síria, o dilema na Ucrânia, a retórica antiocidental que prima na comunicação social russa próxima do regime e a libertação de Mikhail Khodorkovski e outros mantiveram o senhor do Kremlin nas primeiras páginas da imprensa internacional. Recentemente, a revista Forbes considerou que Putin foi a pessoa mais poderosa do ano.
Olhando agora para 2014, continuamos a ver Vladimir Putin no centro da cena internacional. Vários acontecimentos de relevo prometem continuar a dar-lhe um protagonismo excepcional. A Síria de Bachar Al-Assad será discutida em Genebra em finais de Janeiro, sabendo que poderá contar uma vez mais com o apoio da Rússia. Depois, teremos os Jogos Olímpicos de Inverno em fevereiro e a cimeira do G8 em junho. Ambos os eventos vão ter Sochi como cidade anfitriã. Uma cidade que Putin quis transformar no espelho da modernização nacional, à custa de um investimento exorbitante de 52 mil milhões de dólares. Mais tarde, nos primeiros dias de setembro, a Rússia será o fantasma a pairar sobre a Cimeira da OTAN, no País de Gales, sobretudo quando for necessário tomar uma decisão final sobre a instalação do sistema compreensivo de defesa antimíssil. Este é um tema que envenena, de modo muito especial, o relacionamento entre Putin e o Ocidente. Sem esquecer que a questão do alargamento da Aliança Atlântica para Leste continuará na ordem do dia, o que desagrada de sobremaneira ao Kremlin, sobretudo se a candidatura da Geórgia se mantiver.
A verdade é que Putin gosta de estar no foco das atenções. Por razões pessoais e por motivos nacionalistas. Acredita que a sua missão é a de fazer renascer o país dos escombros que resultaram da desintegração da União Soviética. Consequente com a tradição ultranacionalista, pensa que o país precisa de um líder forte, determinado, escorado nos valores da Igreja Ortodoxa e na superioridade da cultura russa, capaz de resistir às conspirações do Ocidente. A ambição é fazer regressar a Rússia ao estatuto de grande potência, em paridade com os Estados Unidos. Para o conseguir, Putin julga que o caminho passa pela imposição de respeito a todo o custo, pela intimidação dos vizinhos e por uma política de confrontação com a Europa.
Esta é uma visão retrógrada. As ameaças que a Rússia tem de enfrentar são no fundamental internas. Têm que ver com a fragilidade das instituições, as limitações à liberdade individual, as distorções da economia, a gravidade dos problemas sociais e com questões de identidade nacional.
Ao nível das instituições, a democracia e o respeito pelos direitos humanos estão ainda em construção. O sistema de justiça precisa de se libertar da manipulação vinda do poder político. A administração pública tem que vencer a corrupção e o nepotismo. Note-se que em 1999 a Rússia surgia na posição 82, no índice de corrupção calculado pela Transparency International. Agora está na posição 127, o que a coloca muito mal, numa escala que compreende 177 estados. Em termos das liberdades fundamentais, os problemas são conhecidos. Lembro apenas que no índice da World Press Freedom, a Rússia de Putin passou da posição 121, em 2002, para a 148, o que traduz uma deterioração do clima de liberdade de opinião nos últimos dez anos.
Do ponto de vista económico, a Rússia é um dos BRICS. Para mim, isto significa crescimento. E assim tem sido. A época de Putin tem sido marcada por uma melhoria apreciável das condições de vida, sobretudo nas grandes cidades. A classe média viu os seus rendimentos triplicar. O Estado tem reservas em divisas como nunca teve, com um valor estimado em 511 mil milhões de dólares. Trata-se, no entanto, de um crescimento desequilibrado. Assenta, no essencial, no petróleo e no gás, bem como noutras indústrias extractivas. O resto do tecido económico permanece atrasado e incapaz de competir nos mercados internacionais. Pior ainda, o país não consegue atrair um nível razoável de investimento. Em 2012, a saída de capitais para o estrangeiro foi de 55 mil milhões de dólares e no ano que agora acabou, a fuga foi estimada em cerca de 65 mil milhões. Ou seja, os milionários russos não acreditam na estabilidade a prazo do seu próprio país. E os investidores estrangeiros ainda menos. Ora, o potencial é imenso. Quer na Sibéria ou nas regiões do extremo oriente, quer ainda no Ártico. Uma parte considerável das futuras fronteiras do desenvolvimento económico mundial irá passar por essas terras.
A problemática social tem que merecer uma atenção redobrada. É verdade que a política actual conseguiu travar o declínio populacional que vinha a ocorrer desde 1991. Há, todavia, muito por fazer, quer em termos de saúde pública, em especial no combate ao alcoolismo e ao aumento das infecções por VIH, quer ainda no que respeita à expansão acelerada do consumo de drogas. Sem esquecer que existe uma proporção elevada de cidadãos a viver abaixo da linha de pobreza. As desigualdades sociais extremas definem a Rússia de hoje.
Num país que foi construído à volta do mito da supremacia das raízes russas, as minorias étnicas e culturais são um desafio de fundo e constante. Para além da centena de grupos étnicos que formam a Federação Russa, há igualmente que ter presente o potencial de destabilização que existe nas repúblicas em que a maioria da população é de cultura islâmica. A instabilidade é particularmente aguda nas regiões do Norte do Cáucaso, do Daguestão à Chechénia. A resposta de Putin tem consistido num misto de autonomia e repressão. Essa é a resposta clássica, própria de quem acredita no uso da força. Não tem em conta que é preciso combater o racismo de muitos russos em relação às outras etnias e promover o desenvolvimento dessas terras distantes da capital.
Não convém, finalmente, esquecer as ameaças externas. Três quartos do território nacional estão na parte asiática do país, mas três quartos da população vivem na parte europeia. Este facto poderá dar asas à imaginação chinesa. A China tem um problema de espaço e de recursos. A norte, do outro lado da fronteira, há todo um território por explorar. Na minha opinião, a segurança externa da Rússia tem que ver, a prazo, com a sua frente oriental. Moscovo está a investir de um modo acelerado na revitalização das suas forças armadas. Vê as fronteiras do lado da OTAN e o Ártico como as áreas prioritárias de defesa. Talvez fosse mais estratégico apostar num relacionamento diferente com a Europa e os EUA, pensar em termos de cooperação e não de hostilidade. E virar-se para o Oriente. Uma presença mais forte na Ásia contribuiria de modo significativo para reequilibrar a balança de poderes nessa região do mundo. Com o tempo transformaria a Rússia numa ponte entre a Europa e o Extremo Oriente. Parafraseando o que Putin disse há uns anos, seria assim um dia possível caminhar de Lisboa a Vladivostok em segurança. Ganharíamos todos.