Ao longo do dia, muito se tem dito sobre o avião ucraniano que foi abatido pelas Forças Armadas do Irão. Quero apenas acrescentar duas observações.
A primeira, para sublinhar que o erro cometido mostrou, novamente, que existe uma oposição interna muito corajosa. Esteve na rua hoje, para pedir a demissão do líder religioso do Irão, o Aiatolá Ali Khamenei, e de outros dirigentes. Tais manifestações, num regime totalitário como o que esse país sofre, exigem de quem nelas participa uma coragem à prova de bala.
A segunda nota é sobre a colheita de informações. O disparo contra o voo comercial foi captado em vídeo pelos serviços secretos dos Estados Unidos. Isto lembra-nos que Washington tem uma capacidade ímpar, quando se trata de espiar um outro país. Mesmo um país como o Irão, que investe de maneira excepcional na protecção das suas informações de segurança.
Não quero estar a maçar nenhum dos meus leitores com mais conversa sobre o Orçamento de Estado. Hoje, como nos últimos dias, não se tem falado de outra matéria. Creio que estamos todos cansados de ouvir uns a dizer bem, que sim, e outros a responder cobras e lagartos. Ou vice-versa, que a confusão nestas alturas é espessa.
Em coisas de orçamentos do Estado, o cidadão quer acima de tudo saber se vai ou não pagar mais impostos, se a burocracia vai funcionar melhor ou não, se haverá incentivos em termos de investimentos e se os serviços públicos essenciais – a saúde, a educação, a segurança das pessoas e a justiça – vão responder mais eficazmente.
O resto é conversa de deputados chatos.
A verdade é que se paga proporcionalmente muito e se obtém pouco, de fraca qualidade e a más horas. Se eu fosse Primeiro-Ministro abriria o meu discurso de apresentação do novo orçamento com uma explicação concreta sobre o que faria este ano para termos um Estado mais competente, mais perto das pessoas e mais poupado. Esse, sim, é o compromisso que se espera do Chefe.
Completaram-se hoje três meses desde que levei com um joelho novo. Foram três meses a aprender que certas coisas levam o seu tempo até estarem resolvidas. A pressa não resolve nada. Apenas a paciência e a determinação abrem as portas do futuro.
Aqui, na nossa rua, nós chamamos-lhe o Matulão. Não é o verdadeiro nome do vizinho, mas é a alcunha que melhor traduz o que dele pensamos. Só mencionamos o seu nome oficial na sua presença. Por respeito, mais ainda por razões de medo, que o Matulão é mesmo enorme e quando se chateia ameaça partir a loiça toda. Diplomaticamente, até o tratamos por aliado, uma palavra que soa bem, mas que esconde a nossa enorme dependência em relação à força bruta desse vizinho. Também esconde as nossas fraquezas.
Cada vez nos sentimos menos à vontade na sua presença. O Matulão está a portar-se, cada vez mais, como um rufia, que só faz o que lhe passa pela real gana. Quando se lembra de nós, aperta-nos o pescoço e obriga-nos a dizer que sim, a cantar as suas canções e a jurar que a nossa aliança está forte e promissora. Na verdade, a aliança está desarticulada e desorientada, parece cada vez mais uma marionette sem tino. Mas as aparências são o que são e, perante o Matulão, tem que se cantar o hino da união e dos vencedores, dos imbatíveis.
O Matulão gasta uma fortuna em fisgas e varapaus. Não hesita e endivida-se até à raíz dos cabelos para adquirir os melhores cacetes que o mercado oferece. Está sempre a inventar novos tipos de objectos para uma porrada mais pesada. Nós, o restante pessoal da rua, não vemos essa coisa da força da mesma maneira. As nossas famílias não aceitam que se gastem fortunas na aquisição de novos cajados e outros bastões. E nós, o resto da vizinhança, a que o Matulão gosta de chamar aliados, também não nos entendemos nessas matérias. Por isso, continuamos nas mãos do Matulão. Coisas que aconteceram recentemente mostram que isso é um risco enorme. Incontrolável.
Escrevo no blog irmão deste, no que é produzido em língua inglesa, sobre o que penso poder ser a resposta iraniana ao assassinato do General Qassem Soleimani. A minha leitura do que vou sabendo diz-me que a opção preferida pelos iranianos seria a antiga prática de um olho por um olho. Ou seja, uma acção, que seria levada a cabo por um grupo exterior ao Irão, mas afiliado à máquina externa iraniana, e que visaria uma alta personalidade americana.
Claro que essa decisão seria um erro muito sério. Levaria, de imediato, a uma retaliação massiva e convencional, por parte dos americanos. Os Estados Unidos estão preparados para esse tipo de represália. Abriria, assim, as portas a uma crise de grandes proporções.
Tem que se evitar uma situação deste género. No blog, sugiro que a liderança europeia se engaje sem demoras num processo de aproximação entre as duas partes. Charles Michel poderia tentar fazê-lo, Ou Angela Merkel.
Esse processo faria, de imediato, baixar a tensão que tem estado a aumentar. E teria hipóteses, desde que permitisse a ambos os lados uma saída sem humilhação. Deve ser tentado sem mais demoras.
Morre-se de frio em Portugal. Quando telefono aos amigos, está tudo a tremer com frio, nas suas casas, nas repartições públicas, nas escolas, nos hospitais, em toda a parte. Esse é um dos sinais das imensas dificuldades que a maioria das famílias sofrem. O dinheiro não chega para tudo, em particular para o aquecimento. Temos aqui mais uma prova que os salários médios estão abaixo das necessidades básicas. Tudo isso causa um grande desconforto quotidiano e acarreta problemas de saúde.
Não consigo falar aos meus amigos belgas sobre o frio que a as famílias portuguesas têm que enfrentar. Não entendem. Com as casas e os lugares públicos a uma temperatura confortável, não conseguem visualizar que isso não aconteça num país europeu como Portugal. Um ou outro que vai agora a Lisboa de férias acaba por sentir na pele o que eu quero dizer. Uma amiga minha esteve recentemente num estúdio B &B na zona de Santos e ia morrendo de frio. Não havia radiador algum no alojamento. Como é uma pessoa desenrascada, resolveu o problema com os meios disponíveis – ligou o forno eléctrico que estava na kitchenette, abriu-lhe a porta e aumentou a temperatura da sala única de um ou dois graus. Deu para sobreviver. Nem quero imaginar qual será a factura de electricidade que o proprietário verá aparecer no final do mês.
Na sequência dos recentes acontecimentos, chegamos ao fim do dia de hoje, domingo, vendo o Iraque ainda mais fracturado, entre Xiitas, Sunitas e Curdos, em crise profunda, política, securitária e económica. Isto, só por si, não augura nada de bom. E se for visto no contexto regional, é ainda muito pior.
O meu amigo A. é visceralmente anti-americano. Todas as suas análises dos factos correntes assentam nesse sentimento, desde que hajam americanos metidos ao barulho. E as suas entranhas ainda ficam mais vulcânicas se a notícia tiver que ver com o Presidente Donald Trump.
Assim, os seus comentários sobre o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani – um assunto sobre o qual escrevi longamente – eram previsíveis. Demoliam, forte e feio, o Presidente dos Estados Unidos. E davam os líderes iranianos como os bons da fita. Ou, menos menos, não havia uma sombra de uma crítica sobre eles.
Eu também não estou de acordo com a decisão tomada por Donald Trump. O meu texto de ontem menciona as principais razões, que são de ordem política e moral. E chamo a atenção para os riscos de agravamento dos conflitos numa região do globo que já está em crise profunda, com várias populações a sofrerem as maiores tragédias há anos. Toda e qualquer acção que leve a uma escalada da miséria e dos confrontos existentes só pode ser condenada. Sem equívocos.
Mas também é de condenar o regime que o Gen. Soleimani defendia. O Irão é um inferno político gerido em nome de Deus. É uma ditadura de religiosos com ideias dos tempos das ténebras, sem qualquer tipo de espaço para a liberdade e para os direitos humanos. É uma aberração histórica, vizinho de outros desvarios semelhantes e de inspiração semelhante, como por exemplo, a Arábia Saudita. O meu amigo A. não conseguiria respirar qualquer pontinha de democracia no Irão. Nem seria aceite, por ser visto ou como cristão ou como ateu, duas condições inaceitáveis nas terras dos religiosos do fanatismo.
Perante isto, que fazer, que papel poderemos desempenhar, enquanto europeus?
Modestamente, aqui ficam duas ideias.
Por um lado, procurar atenuar o confronto entre os Estados Unidos e o Irão, bem com os conflitos entre este último e os seus vizinhos sunitas. A mediação é a via. É isso que a França, em ligação com o Japão, têm tentado fazer, de modo confidencial, nos últimos meses. Não se fala no assunto, os contactos têm sido altamente secretos, mas existe uma tentativa de mediação. É evidente que esse processo ficou seriamente afectado com a decisão de matar, tomada pelo Presidente americano. Também é verdade que Donald Trump não acredita nas possibilidades de êxito dessa iniciativa. Na sua maneira de ver, a força é quem mais ordena. Mas as mediações são assim, têm primeiro que ganhar a confiança das partes. Mediar exige que se tenha a paciência de caminhar num labirinto.
Por outro lado, cabe-nos continuar a falar de democracia, do direito das populações em decidir que regime e dirigentes políticos querem, insistir na liberdade e na tolerância religiosas, enfim, nos valores que definem o mundo deste tempo que é o nosso. Temos, porém, que o fazer com coerência, evitando a duplicidade que tantas vezes nos caracteriza.
A decisão de autorizar o ataque mortífero contra o General Qassem Soleimani levanta muitas questões e abre a porta a um bom número de incertezas. Na minha opinião, foi tomada no seguimento de dois acontecimentos que a Administração americana considerou como especialmente marcantes.
Um, foi o ataque, por manifestantes próximos das milícias que o Irão apoia no Iraque, contra a embaixada dos Estados Unidos em Bagdade. Nos círculos dirigentes, em Washington, esse incidente é visto como muito sério, para além de lembrar o que aconteceu em Teerão há quarenta anos. Para a liderança americana, a investida contra a embaixada é algo que não pode ficar sem resposta.
O outro acontecimento foi o exercício militar naval que o Irão levou a cabo, há uma semana, em conjunto com a China e a Rússia. A actual Administração americana não queria que qualquer desses três países pensasse que essas manobras marítimas teriam qualquer possibilidade de a intimidar ou diminuir o seu espírito de resolução. E essa determinação e firmeza tinham que ser demonstradas sem margem para equívocos.
Ao decidir, o Presidente Trump também deve ter pensado no impacto que essa acção de força teria no seu eleitorado. Estamos num ano político decisivo para ele. Precisa de mostrar que não hesita, nem tem estados de alma, quando se trata daqueles que são apresentados como os inimigos dos Estados Unidos.
Mas temos aqui vários problemas.
Um deles, é que actuar para mostrar força, na base do princípio do olho por olho, dente por dente, é inaceitável. Abre as portas à violência e deita para o lixo certas normas básicas das relações entre os Estados. É um retrocesso histórico. Não se pode construir a paz com base na retaliação. A comunidade internacional tem outros mecanismos para tratar dos conflitos e para fazer reflectir os governos que não obedecem às regras estabelecidas.
Outro, é que este tipo de decisões não pode ser tomado sem se medirem todas as consequências que poderão ocorrer em seguida. A análise que faço das declarações de Mike Pompeo é que essas consequências não foram tidas em conta. O Secretário de Estado (Ministro) fala agora de baixar a tensão na região, após um acto que leva inevitavelmente a uma escalada. Parece aquele vizinho que passa a noite com a música aos berros e na manhã seguinte me diz nas escadas que estamos todos a precisar de repouso e tranquilidade.
Um terceiro aspecto, tem que ver com a legalidade e a moralidade deste tipo de acções. Este é um assunto que não pode ser ignorado. A própria guerra tem as suas regras. Vários académicos se têm debruçado sobre a questão. E a opinião maioritária vai no sentido contrário ao que agora aconteceu.
Como também não se pode ignorar a discussão sobre a doutrina militar que está por detrás da chamada “decapitação” dos movimentos hostis. Não me vou alongar sobre esse tema, mas a verdade é que a validade da teoria que advoga a eliminação dos líderes como maneira de solucionar um conflito tem muito que se lhe diga. Muitas vezes, o líder morto é substituído ou por outro ainda mais radical ou então pela fragmentação do movimento e um novo nível de perigosidade, amorfa e mais difícil de combater.
Ao fim e ao cabo, tudo isto é bem mais complexo do que muitos nos querem fazer crer. E essa complexidade aumenta exponencialmente quando um personagem como Qassem Soleimani é assassinado por um grande Estado ocidental.
Este ano vou continuar a fugir de trauliteiros como o Diabo da cruz. No entanto, isto não quer dizer que não entre numa ou noutra guerra, se valer a pena. Só que com a maioria dos meus amigos e conhecidos caceteiros, não vale a pena. Nesses casos, é melhor fingir que não vi. E cada um entenderá isso como melhor lhe parecer.