Aqui está o texto de hoje na Visão
O baile da segurança
Victor Ângelo
Joseph Kony, o chefe do grupo de criminosos conhecido como Exército da Resistência do Senhor, que espalha terror no triângulo fronteiriço constituído pela República Centro-africana, o Sudão do Sul e o Congo, não utiliza telefones de qualquer tipo, nem computadores ou aparelhos de GPS. Por isso, não foi ainda detectado e tem conseguido evitar ser capturado, apesar dos milhares de soldados, incluindo tropas especiais americanas, que andam no seu encalço. Também será, pelas mesmas razões, a única “pessoa de interesse” que a National Security Agency (NSA) dos Estados Unidos não consegue espiar. Todas as outras o são, de modo sistemático ou ocasional. Incluindo Angela Merkel, há vários anos, como é agora do domínio público.
Os cínicos diriam que estamos na era da “democratização da espionagem”, graças à informática e às redes de comunicação. Cada cidadão passa, assim, a ser um alvo possível ou real, mesmo quando a informação recolhida não serve para nada. E, tal como na pesca por arrasto, as redes de fundo e de malha fina destroem mais ambiente do que conseguem apanhar algum raro peixão. No caso concreto, a actuação indiscriminada da NSA traz um prejuízo desnecessário à imagem dos EUA e dá lugar a um sistema complexo, avassalador e controverso.
Escrevi neste espaço, no Verão, que “está nos genes da administração americana, desde sempre, mas sobretudo depois do 11 de Setembro, escrutinar tudo e todos...” (Artigo da Visão “Escutas e fingimentos”, de 11 de Julho). É a obsessão do Big Brother. Assenta numa visão do mundo que considera os outros como uma ameaça potencial. Mesmo os aliados têm que ser mantidos sob escrutínio. E que tem as suas raízes na cultura da espingarda do velho Oeste: sentir-se protegido passa por ter uma arma na mão, ser mais forte do que o resto do mundo e ousar fazer uso da força preventivamente, quando considerado necessário. É uma filosofia que considera a segurança como a principal razão de ser do Estado. A que se junta uma falácia em que muitos acreditam: a da superioridade moral da elite política norte-americana. Ao achar-se virtuosa, a classe dirigente ganha justificação para agir fora das normas internacionais e das convenções diplomáticas.
Na Europa, a opinião pública não aceita essa maneira de ver nem esse tipo de práticas. Mais ainda. Certas actividades da NSA têm a configuração de crime, face à legislação europeia. Os dirigentes da Agência e os operacionais no terreno seriam então passíveis de incriminação e, teoricamente, poderiam estar sujeitos a mandatos de captura ou ser declarados personae non gratae, dependendo dos casos. Somos aliados, sim e ainda bem, mas tem que ser dentro das regras e no respeito pela soberania, as instituições e leis de cada Estado da aliança.
Claro que Berlim e Paris, que são quem conta, não estão dispostos a ir tão longe. Afirmam, no seguimento da cimeira europeia do fim-de-semana, que vão enviar uns negociadores, para discutir com Washington. Já haviam dito o mesmo em inícios de Julho, sem que haja conhecimento de qualquer acordo concreto que desde então possa ter sido obtido. Estamos, como é hábito, perante uma resposta frouxa e para consumo popular. Fica-se com a impressão que Alemanha e a França apenas visam uma forma de relacionamento com os serviços americanos que seja mais ou menos semelhante ao que já existe entre os EUA e o Reino Unido. Uma vez mais, perante uma oportunidade a sério de reconstruir, em moldes novos, a cooperação de segurança com os EUA, os dirigentes europeus preferem ir ao baile cada um pelo seu pé.