Anda por aí muita gente a opinar se deve ser “Sim” ou “Não”. É normal, porque a situação é grave e não deve deixar muita margem para a indiferença.
Mas a decisão não é nossa. A nós cabe-nos esperar pelo resultado da consulta popular.
Depois veremos qual é a leitura que faz quem tem, nessa terra, legitimidade para o fazer. E só então nos deveremos pronunciar. Só espero que o façamos tendo em conta as diferentes dimensões deste enorme desafio. Ou seja, evitando tomadas de posição apressadas, superficiais e emotivas.
Enfim estaremos perante um verdadeiro chamamento em termos de liderança.
Publico na Visão que hoje chegou às bancas o texto que abaixo transcrevo.
Boa leitura.
Retirar Tsipras da fotografia
Victor Ângelo
No chamado “coração da Europa” – Alemanha, França e Benelux, em particular – cerca de três em cada quatro cidadãos consideram que a ajuda concedida até agora à Grécia foi generosa. Também acham que não deve ser renovada, salvo se houver um compromisso forte e inequívoco em matéria de reforma do Estado e das finanças públicas. Simultaneamente, cerca de 60% desses mesmos eleitores preferiria que a Grécia se mantivesse na zona euro, para evitar uma crise de proporções imprevisíveis. Estes números são estimativas. Resultam de análises feitas em gabinetes opacos. Valem o que valem, como muitas das notas confidenciais que os serviços desse tipo produzem. Mas são as que circulam nos círculos políticos que têm de facto poder de decisão. Ajudam a compreender certas tomadas de posição. E lembram-nos, uma vez mais, que em política o que pesa de verdade é a opinião pública interna.
Os mesmos analistas foram chamados a refletir sobre as opções que a Grécia teria, se procurasse ajuda fora da UE. A possibilidade mais óbvia parecia ser a russa. A Grécia poderia solicitar assim o apoio político e financeiro de Putin. A conclusão a que se chegou é que se trata de um beco sem saída. A carta russa não vale no baralho que ainda resta a Atenas, um baralho hoje quase sem trunfos. Primeiro, a dimensão do problema é tal que está fora das possibilidades financeiras de Moscovo. Segundo, à Rússia interessa minar a união da Europa no centro e não na periferia. Terceiro, uma aproximação desse tipo acarretaria o afastamento da Grécia dos núcleos de decisão estratégica da Aliança Atlântica. Ora a presença na NATO é vital para os seus interesses de soberania. Não seria concebível, em Atenas, estar do lado de fora, enquanto a Turquia, o rival por excelência, continuaria dentro da Aliança. Sem contar com a possível oposição das forças armadas gregas a uma decisão política que pusesse em causa a sua inserção plena na NATO.
O primeiro-ministro Alexis Tsipras resolveu então jogar a carta do referendo. Foi uma decisão de desespero. Também um golpe fatal no relacionamento pessoal com os seus pares europeus. Estas são as apreciações que prevalecem em Bruxelas, do outro lado da mesa. A resposta parece ser clara. Se o campo do “não ao acordo” ganhar, Juncker e os outros tomam nota e passam à fase seguinte, que é a de consolidar a estabilidade financeira dos restantes membros da zona euro. Existe a convicção que será possível gerir os riscos decorrentes do “Não”. Porém, os chefes da Europa farão tudo o que estiver ao seu alcance, a tordo e a direito, para que seja o “Sim” a vencer. Para eles, o objetivo político principal mudou com a convocação do referendo. Trata-se, a partir deste momento, de criar as condições internas que precipitem o fim da coligação de governo grega.
E isto leva-me a um último ponto. A crise permitiu tornar clara a ideologia que sustenta o projeto europeu. Pouco a pouco, a Europa foi sendo formatada para ser governada ao centro. É uma construção neoconservadora, inspirada por opções políticas que assentam num liberalismo económico e cultural com fortes laivos sociais. Umas vezes o acento será mais no liberalismo, outras nas dimensões sociais, mas tudo dentro de um quadro ideológico que não ponha em causa o sistema. É agora evidente que o governo do Syriza ou arranjos semelhantes, noutros cantos da UE, não cabem neste quadro. Essa é a mensagem que se quer fazer chegar aos eleitores europeus.
A questão grega parece ter chegado à hora da verdade. O dia foi de frenesim, o governo de Atenas apresentou novas propostas, que estão a ser analisadas. Muito depende da conclusão a que chegarem quem as está a analisar, gente da Comissão Europeia, do BCE e do FMI.
Vai ser difícil, no meu entender, que as novas proposições passem no crivo técnico. Porém, o momento é altamente político. E é possível que a política diga que sim, que abra uma janela temporária. Não sei se assim será, pois o governo da Grécia queimou muitas pontes. Diplomaticamente, a coisa tem sido um desastre. Ora, os políticos precisam de gestos diplomáticos para poder justificar, perante os seus eleitorados, qualquer decisão mais favorável. É que uma boa parte da opinião pública europeia está pouco inclinada para o lado grego.
Veremos amanhã à noite qual será o novo capítulo de todo este drama bem confuso em que a Europa e sobretudo a Grécia, se encontram.
O ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, terá aprendido, este fim-de-semana, duas ou três coisas. E como todas as aprendizagens que se fazem no calor da luta, esta também deve ter tido o seu preço, nomeadamente no que respeita ao seu orgulho pessoal. Um homem com um ego grande, desmedido em certa medida, sofre mais quando vê a sua autoridade, como agora aconteceu, ser posta em causa, publicamente, pelo seu chefe imediato, o Primeiro-ministro Alexis Tsipras.
As lições que aprendeu também podem ajudar outros, em circunstâncias semelhantes.
Terá compreendido que, na Europa, um contra todos não leva a parte alguma. Que a arrogância tem um custo muito elevado, em matéria política e não só. Que na área das relações entre os Estados a diplomacia e o respeito pelas contingências dos outros países são questões fundamentais, que devem ser claramente entendidas e cuidadosamente equacionadas. A Grécia terá, não podemos negar, as suas exigências, mas os outros também têm as deles. A diplomacia serve para que se encontre um ponto de acordo.
Terá ainda aprendido que quando a situação é urgente não se pode andar a empatar, a adiar a solução, na vã esperança que os outros acabem por ceder. Um bom número de países do eurogrupo não tem qualquer tipo de sentimento de obrigação em relação ao governo grego. Mais. Acreditam que a insolvência da Grécia, se viesse a acontecer, já não teria o impacto que se previa em 2011 ou 2012.
Há uma outra ilação que talvez lhe esteja a passar pela cabeça: nestas coisas, quando a desautorização política acontece, convém pensar no futuro, noutras hipóteses, para além do posto de ministro.
Transcrevo de seguida o texto que hoje publico na revista Visão. Boa leitura, com serenidade que o momento é grave.
À mesa da Europa
Victor Ângelo
Na cimeira europeia de hoje, Alexis Tsipras e Angela Merkel estarão sentados, pela primeira vez, à volta da mesma mesa. Não vai ser fácil. Para além do choque de personalidades, que são bem diferentes, e das opções políticas divergentes, haverá certamente um grau elevado de tensão emocional. Ora, no topo da pirâmide política, a empatia – neste caso, será de falar de antipatia – entre os líderes tem muito peso. Creio, no entanto, que a preocupação fundamental de ambos vai estar focada no que entendem ser a defesa dos interesses dos respetivos cidadãos. Mas se cada um deve lutar pelos seus, não pode deixar de ter, ao mesmo tempo, a lucidez necessária para identificar os pontos comuns, os destinos partilhados. Sobretudo agora, num momento de crise profunda e de inquietação geral em relação ao futuro. Nesta cimeira temos em cima da mesa, mais do que nunca, um desafio existencial: manter a coesão da UE. É isso que espero, embora com uma dose de pessimismo, que esteja na linha de mira de Tsipras e de Merkel. E também dos outros chefes de estado e de governo. Esse é o discernimento que permite identificar quem tem craveira de estadista.
Sejamos claros, neste momento de incertezas e de riscos. Diga-se, com elegância e limpidez, que quem pensa apenas em termos nacionais não cabe no projeto comum. Os nacionalismos a todo o custo foram a causa de muitas calamidades no nosso continente. Hoje são de novo um perigo maior. Fala-se amiúde nos valores europeus, tantas vezes de modo irrefletido, sem que nunca se faça referência ao valor da harmonia, que se deve manifestar através da cooperação entre os distintos países que constituem o mosaico. O crescimento dos movimentos populistas, cada vez mais evidente, é uma ameaça direta contra esse valor. Sobretudo o populismo de extrema-direita, pela tendência que tem para a xenofobia e o racismo. Uma grande parte do combate político passa agora pela denúncia dessas ideias e pelo isolamento de quem as apoia, no interior da Europa, e de quem as instiga, de fora, por ver vantagens no esfarelar da união.
Coesão, sim, e acima de tudo. Porém, a coesão tem um preço. Cada estado membro deve assumir o seu quinhão de responsabilidade. Também aqui convém ser claro. A responsabilidade primeira, quando um país está em apuros, pertence aos seus cidadãos e às suas instituições nacionais. Esta é a única posição que tem pés para andar. Como diz o ditado, Deus ajuda quem a si se procura ajudar. Culpar os vizinhos e esperar que a salvação venha do exterior reflete fraqueza e demagogia. Quem tem um problema faz um plano, gostava de repetir o meu jardineiro no Zimbabué, um homem simples mas cheio de bom senso. E mostra que o quer executar, respondia-lhe eu.
Do outro lado da mesa, o preço inclui saber ultrapassar os preconceitos. Sei que muita gente politicamente importante no centro e no norte da nossa Europa olha para os gregos como gente do kebab, do Médio Oriente, uma espécie de antecâmara dos turcos e dos libaneses, com tudo o que isso significa nas suas mentes em termos de desconsideração. E que acha que chegou o momento de limpar a casa e deixar os “levantinos” ir à vida. Não tenhamos ilusões nem papas na língua. Esta maneira de pensar é mais generalizada do que julgamos, num continente em boa parte conservador e enviesado. Tem que ser combatida. À mesa da Europa, o menu deve continuar a ser variado e a poder combinar diferentes sabores.
Na zona euro, as decisões que contam precisam do assentimento de todos os Estados membros. Esquecer isso é um erro primário. Como também me parece um erro táctico de palmatória hostilizar publicamente um dos governos membros. Sobretudo numa altura de crise e num momento em que já existe muito espaço para incompreensões.
Em diplomacia e nas relações entre os Estados, os ataques gratuitos acabam por sair caros. E saem ainda mais custosos para quem precisa do acordo dos outros como de pão para a boca.
Acabo de ver a entrevista que o ministro das finanças grego deu à BBC ontem ao fim do dia, depois dos mal-entendidos durante a conferência de imprensa com o presidente do Eurogrupo. O ministro diz que, afinal, está disposto para discutir com a troika, mas não quer a continuação do programa actual. Declara, igualmente, que é a favor das privatizações, incluindo a do porto de Pireus. Mas terão que ser feitas de outro modo. E assim sucessivamente. A entrevista é como pôr água na fervura, uma tentativa de acalmar os ânimos.
Acho bem. Tem havido muito ruído à volta da Grécia. É altura de serenar e de pensar a sério nos problemas – imensos – que o novo governo terá que enfrentar. Sem tempo para grandes folgas, que a situação é urgente.
E do outro lado, no resto da Europa, convirá igualmente deixar correr a enxurrada. Nunca é bom intervir quando a torrente está no seu máximo. Só complica. Até porque este lado tem o tempo a seu favor. O que é, nestes dias que correm, um luxo.