Percorri a Avenida da Liberdade, no centro de Lisboa, esta manhã, de alto a baixo, em ambos os sentidos. Foi um passeio do desalento. As poucas lojas de luxo ou de qualidade, uma aqui outra acolá, não chegam para fazer esquecer as muitas outras fechadas, menos ainda os vários refúgios de cartão e mantas dos sem-abrigo que agora se “domiciliaram” nalguns portais dos prédios da avenida.
Pensei nas zonas nobres de comércio de Londres, Paris, Roma ou Nova Iorque, comparei sem querer comparar e fiquei com a Liberdade triste.
Convém ver o país e o mundo com uma perspectiva mais ampla do que a que utilizamos para analisar a nossa economia doméstica. Muita gente, mesmo muita, continua a julgar as coisas nacionais e internacionais como se estivesse a contar feijões.
O país deve responder aos anseios dos cidadãos, é bem verdade. Mas também tem responsabilidades enquanto membro da comunidade das nações. Uma família pode viver do seu lameiro, com mais ou menos dificuldades. O país, não. Precisa de se abrir aos outros e assumir um papel que marque. Que o defina em relação aos outros. Quanto mais relevante for esse papel, mais as famílias acabarão por ganhar, que a economia é cada vez mais internacional.
Certos senhores, aqui entre nós, pensam que não se deve falar todos os dias da crise. Que nos estamos a transformar num muro de lamentações, a cultivar a crítica e o pessimismo, a não pensar no lado positivo das coisas. Que não vemos o valor que cada décima estatistíca tem, em termos de crescimento da economia e de boa política.
Esses senhores não conhecem, de facto, a crise. Ocupam posições sólidas, vivem com desafogo, gostam do que é bom e bonito.
Compreendo que os incomode que se fale de quem sofre, do desemprego, das dificuldades dramáticas em que muitas famílias se encontram, dos pequenos empresários que já nem sabem por que razão mantêm as portas abertas, do pavor que representa uma taxa de juro em alta.
Em África e noutros países de grande miséria encontrei, igualmente, gente assim. Achavam mal quando se lhes falava da luta contra a pobreza, da falta de condições em que viviam a maioria das famílias. Do estado alarmante da saúde pública. Acusavam-nos de navegar e pescar nas águas do pessimismo. De termos uma postura estruturalmente negativa. De viver à custa de relatórios alarmistas. Nalguns casos, chegavam a acusar-nos de falta de respeito pelo país em causa. (São senhores que gostam de cavalgar no patriotismo arrebatado).
Mas a crise não precisa de vuvuzelas para se fazer ouvir.
A falta de formação profissional dos trabalhadores portugueses continua a ser uma das razões fundamentais do nosso atraso económico. Basta andar por aí para se perceber que somos um país de amadores, de "soldados sem instrução" e de fazedores de coisas em cima do joelho.
Portugal está coberto por um nevoeiro espesso. Como não dá para enxergar muito, a maioria dos políticos, dos jornalistas, dos juízes, dos funcionários das causas rotineiras, e outros, andam com as vistas curtas. É como na Escócia, onde o frio húmido e fechado faz aparecer fantasmas. No nosso caso, os fantasmas entram mesmo nas salas apagadas das comissões parlamentares. Instalam-se nas nossas casas, pelas televisões que nos tornam ainda mais rasteiros. Geram todo o tipo de medos e uma variedade de lendas.
Como tudo é muito irreal, a palavra mais frequente, nas bocas desses seres que a névoa cerrada torna cinzentos, é: Mentira! Sim, mentira! Passam o tempo a chamar-se mentirosos uns aos outros, por considerarem que só a sua versão da miragem é que deveria fazer fé.
Mas a verdade, para além das brumas fabricadas nas várias centrais conspirativas, é que há corrupção no ar. Abusos de poder. Arrogância. Falta de moral cívica. Ausência de sentido nacional. Desprezo pelos mais fracos, os anónimos da vida. E muita incompetência. A governação e a sociedade estão em crise. Estes são factos reais. Não são meras construções mentais, nem almas de um outro mundo. São problemas bem portugueses.
Diz um leitor, num comentário de hoje, que a saúde não se interessa pelos pobres. Que os pobres são humilhados todos os dias nos centros públicos de saúde.
Não posso estar mais de acordo. O SNS é uma caricatura.Os utentes são tratados com desprezo. Um velho senhor da política, que sempre aponta o estabelecimento do SNS como uma grande iniciativa do seu partido, um momento histórico na governação que esse partido liderou, nunca deve ter utilizado o sistema. Vive, como em muitas outras áreas, numa ilusão política.
Quem é pobre confronta uma realidade bem mais diferente. Veja-se, a título de exemplo, o que o meu leitor conta.
Este é um dos aspectos da política portuguesa que terá que mudar.
Escrever é uma forma de intervenção social, um contributo. Mas o artigo de opinião "A porcaria", que um senhor cheio de raivas, socialmente privilegiado e vagamente poeta, homem de letras e ódios, publicou hoje no DN, um tal Vasco Sem Graça e que não é de Moura, ultrapassa os limites da baixeza intelectual. É trabalho de um espírito doente.
O DN, se quer ser tido como um órgão de referência, não pode imprimir coisas dessas. Textos desse tipo só para pasquins.
Tive tempo para ler o programa do governo, ontem entregue na Assembleia da República. Fi-lo a muitos pés de altitude, entre dois destinos. Os portugueses são gente que anda sempre à procura de destinos.
Depois do enfraquecimento do governo, tivemos hoje a confirmação do enfraquecimento da Presidência. Sem falar, claro está, na pouca qualidade da maioria dos novos deputados.
À crise económica junta-se agora a crise das instituições da República.
Preocupante.
É tempo de dar a primazia aos interesses do país. Ultrapassando as questões pessoais e os egos ofendidos ou vingadores. Atacando os verdadeiros problemas, da economia, da justiça, da educação, da pobreza e da segurança.
No debate de ontem, entre os dois chefes, nada de novo. Um diálogo de míopes. Os tolos liderados por míopes.
As questões fundamentais do emprego e do crescimento económico, da falta de competitividade da economia portuguesa, da Justiça que não funciona, do endividamento do Estado e das famílias, da insegurança e ordem pública, não mereceram qualquer atenção.
Entretanto, queiram fazer o favor de notar que nos últimos quatro anos, a coligação alemã, que irá a votos no mesmo dia das nossas legislativas, viu a criação de dois milhões de novos empregos.