Ontem e hoje, passei várias horas de Learjet, a atravessar a África Central. Felizmente que o jet é rápido e confortável. A tripulação, dois jovens alemães, um dos quais Negro, que mesmo na Alemanha, o mundo está a mudar muito depressa, é muito flexível, o que me permite voar logo que a missão em determinado país esteja concluída.
Hoje começámos o dia em Bangui. Tinha uma reunião com o General comandante das forças expedicionárias da África Central. Um homem dos Camarões, com duas estrelas e muita paciência. Que isto de ser comandante militar em zonas de grupos armados exige sabedoria e calma.
Tinha dormido numa residencial, junto à Catedral, no sopé das colinas de Bangui. Um sonho, acordar cedo e ver as árvores de grande porte, duma vivacidade única, que nos dá força e faz desejar todas as belezas do mundo. As colinas estão menos densas do que há 25 anos, quando vivi nesta cidade. Mas continuam a ser povoadas por árvores tropicais que impressionam o viajante de olhos abertos.
Como é frequente, a manhã estava azul de linda. As nuvens, como nas nossas vidas, só aparecem ao fim da tarde.
Seguimos, depois, muito para Norte. Directamente de Bangui para Abéché. Do Equador e dos rios potentes, para o deserto e as colinas de pedras nuas. O vento sopra desde o início da história em Abéché, e as colinas já não têm solo. A erosão é tal que cada colina é apenas um amontoado de pedregulhos, sem terra que faça a ligação. Parecem pirâmides egípcias.
Nesta altura do ano, os wadis --rios temporários, comuns no deserto -- estão semeados de poças de água. Faz bem ver água nestas terras de cascalho e areia.
No deserto, a tarefa política era iniciar a plantação de 5 000 árvores. Acácias. Resistem à falta de água. Cada acácia é como um voto de confiança que obtenho das populações locais. Cada árvore é um reabrir da esperança.
Houve grande festa. As mulheres locais estavam lindas, nos seus vestidos brancos e lenços vermelhos, as cores da felicidade. Eu estava de fato, pois vinha do meu encontro com o General. Nunca tinha plantado árvores de fato. Digo-vos que não é nada cómodo. Mas consegui enterrar umas plantas de manga, que é um fruto muito apreciado.
Umas horas depois, estava em N'Djaména. A discutir geopolítica com os Franceses.
No final do dia, consegui arrastar os pés para fora de todas estas ocupações. Que grande vitória.
Este blog festeja hoje o seu primeiro ano de escrita. Nem sempre foi fácil encontrar o tempo e a vontade, que isto de andar aos trambolhões pelo mundo dos outros tem as suas dificuldades. Mas tem valido a pena. Existe um número muito razoável de leitores fiéis, uns textos que saíram bem, muitas fotografias originais.
Hoje, cedo, senti uma brisa fresca. Está um lindo dia de Sol. Mas também se consegue apanhar um pouco de frescura, à sombra das árvores que estão na plena força do Verão. Tudo isto é altamente apreciado, quando se vem de vários meses no Sahara e no Sahel.
O verde e a brisa dizem-me que é tempo de desaceleração. Por duas semanas.
Quem anda aos ventos secos compreende melhor a bênção que sai do verde das árvores frondosas.
Estas duas crianças foram das poucas que ficaram em Birao, cidade capital da Província de Vakaga, no Nordeste na República Centro-Africana. Vivem actualmente numa tenda, em situação de grande vulnerabilidade. Uma lona instalada nos terrenos da casa do único Deputado local.
O Deputado transformou o seu quintal num campo de deslocados. É um homem de grande mérito e de uma coragem exemplar. Num canto da propriedade, que está a duas centenas de metros do campo da MINURCAT, a força militar das Nações Unidas que chefio e que tem um destacamento de 300 homens, Togoleses, na zona. A proximidade com o nosso campo tornou a casa do parlamentar um sítio de refúgio.
Vivem cerca de 400 deslocados no interior da sua cerca. Num canto, várias famílias da tribo Rounga. Separados por cinco metros de no man´s land, estão as tendas das famílias Kara. Mais à frente, de novo separados por meia dúzia de metros que fazem a diferença, vivem as famílias da tribo Goula. No extremo do quinta, é a zona dos Haoussas. Cada tribo no seu canto.
O Comité Internacional da Cruz Vermelha forneceu ao Deputado umas centenas de sacos de farinha de milho. Assim se vão mantendo as famílias. Nós fazemos as patrulhas de segurança. No exterior. Pela cidade perdida.
Birao, um centro normalmente cheio de actividade comercial, a cerca de 60 quilómetros da cidade sudanesa de Am Dafok, está moribunda. Mais de 60% das habitações foram pilhadas, queimadas, de seguida. A grande maioria das pessoas fugiu para o mato. O primeiro ataque rebelde foi a 6 de Junho. O segundo, no Domingo, 21.
Estive de visita no dia 25.
Uma desolação. Não há autoridade na cidade. O Governador, o Presidente da Câmara, os funcionários, estão todos em fuga. Cerca de 90 militares do governo mantêm uma certa paz. Mas andam de mão dada com um grupo rebelde, que controla a cidade. Ou seja, tomaram partido, pois esse grupo rebelde é inimigo jurado do que atacou a localidade. São dois grupos, que representam duas tribos vizinhas, que andam numa guerra sem tréguas. Gente pobre armada até aos dentes.
Os rebeldes aliados do governo passeiam-se em Birao como quem anda a apanhar ar fresco à beira Tejo.
Ninguém fala de Birao, por esse mundo fora. Bangui, a capital, fica a cinco dias de viagem por pistas quebra-espinhas. Nem da Vakaga, metade de Portugal em superfície, 38 000 habitantes, muitas árvores, pássaros exóticos e animais selvagens. Um paraíso onde se sofre todos os dias.
O nosso segundo campo, no aeroporto da cidade, a 12 quilómetros do burgo, fica na zona de passagem para o ponto de água de uma manada sem fim de búfalos. Nesta altura do ano, em que a água é muito escassa, os animais transitam todos os fins de tarde pela zona do campo. Convém estar atento, que os búfalos não são animais para brincadeiras. Estes não são como os pacíficos primos que se passeiam por Timor Leste. São bichos bravos a sério.
Como os homens.
Quem sabe onde fica Birao, no mapa, na vida, na morte?
Estou numa fase em que o tempo é pouco para fazer o que há que fazer.
Ainda hoje, lá fui novamente a Bangui. Tinha lá estado na Sexta. Fui falar com o Presidente e o Ministro da Defesa. No seguimento das confrontações bem violentas de ontem, em Birao. Que se seguiram a outras que haviam ocorrido a 6 de Junho. Os grupos armados estão cada vez mais equipados, metralhadoras ligeiras e morteiros. Gente rural pobre, mas armada até aos dentes. E que não dá tréguas ao inimigo. Inimigo apanhado, gente com quem viveram lado a lado durante décadas, é inimigo executado. No local. Sem perder tempo. Alguns são decapitados.
O leitor talvez até nem saiba onde fica Birao. Esse é outro dos problemas. É um conflito que não aparece nos ecrãs. Por isso, ignorado. Morre-se em silêncio, em Birao.
Quando voltei de Bangui, tinha uma pasta de rumores, boatos, em cima da mesa, dizendo que os rebeldes chadianos estavam a dois passos de lançar uma nova ofensiva. Tudo sem fundamento. Mas o suficiente para alarmar o pessoal. O pânico é uma moeda barata, que circula muito rapidamente. Tudo muito vago. Mas suficiente, também, para exigir que se mobilizem meios para apurar a veracidade da "informação". Amanhã lá vão todos os meus agentes de informação para o terreno, que é bem vasto, para tentar perceber o que se passa.
Tudo isto não dá muito tempo para pensar na praia, no Sol, nos simples prazeres da vida.
Há por aí alguém que queira trocar de funções comigo, nem que seja só pelo tempo suficiente que me permita ir esticar as pernas à beira-mar?
Uma vida sempre a lutar. Sobretudo para quem anda pelos desertos da vida. Quando aparece uma poça de água, é preciso aproveitar. Com elegância, que tudo deve ser feito com graça e a calma dos sábios.
Hoje perdi um tenente da Polícia chadiana. Tinha organizado uma perseguição nas terras desérticas do Nordeste, no seguimento do roubo de uma viatura 4X4, num campo de refugiados. O tenente e os seus homens foram no rasto dos bandidos. Nas pistas que levam à fronteira com o Sudão, no meio da areia e dos montes comidos por milhares de anos de vento do deserto. Os polícias das Nações Unidas seguiam na segunda viatura, em apoio ao tenente e à sua equipa.
Os bandidos, nestas terras, estão equipados de AK-47, metralhadoras ligeiras de grande eficácia. Prepararam uma emboscada, como resposta à perseguição. A viatura da frente foi varrida à bala. O tenente teve morte instantânea. Um outro polícia ficou ferido. O veículo dos Polícias das Nações Unidas guinou à direita, para fugir às balas e foi parar na duna mais próxima.
O Sol estava a pino. Era a hora do meio do dia.
O Tenente Abdallah Ismael foi enterrado em Iriba, no Nordeste do Chade, a 50 quilómetros do local do ataque, ao fim da tarde.
Como homenagem, convido o leitor a ir ao Google Earth e ver onde fica Iriba e o campo de refugiados de Am Nabak.
Estou de volta do Sul do Chade. Fui de avião, voltei pelo mesmo meio, e andei cerca de 500 quilómetros por estradas e picadas, não muito longe da fronteira com a República Centro-Africana. Foi um safari paralelo à fronteira, de Oeste para Leste.
É uma zona onde o controlo do Estado se tem vindo a afirmar. Nota-se um reforço dos sistemas de segurança, num quadro democrático aceitável. Mas continuam a surgir casos de ataques nas estradas mais isoladas, raptos de crianças pertencentes às comunidades pastorícias --para forçar os familiares a vender os bovinos e a pagar os resgates; deste modo, associa-se uma certa forma de vingança contra os nómadas cujos animais destroem as culturas agrícolas locais, com maneiras ilícitas e expeditas de ganhar dinheiro -- e conflitos mortais entre os agricultores e os pastores. Existe ainda, do lado da fronteira Centro-Africana, toda uma série de grupelhos armados, rebeldes nas horas vagas, caçadores furtivos de animais de grande porte a tempo inteiro, que são uma ameaça para a estabilidade da região.
Trouxe uma ou outra foto, que acabarão por aparecer neste blog. Até tirei uma foto a um dos vários gatos do Padre Avelino, homem de Penude, em Lamego, que encontrou a vida na zona de Sahr, a 800 quilómetros de N´Djaména. É um missionário comboniano, que sabe viver a alegria da vida dedicando-se por inteiro aos esquecidos do meio da África.