Uma coluna rebelde, de cerca quarenta homens, está a movimentar-se, em direcção ao campo de refugiados sudaneses de Sam Ouandja, situado a cerca de duzentos quilómetros ao Sul de Birao. Dois combatentes foram assassinados ontem no campo. Receia-se que este movimento tenha que ver com uma possível retaliação contra os refugiados, a quem acusam de ter morto os seus camaradas.
Entretanto, o chefe desta rebelião, Damane, foi contactado hoje. A mensagem que lhe fizemos chegar é que qualquer violência contra os refugiados é inaceitável e não resolve o problema da justiça que precisa de ser exercida.
O grupo de Damane, o UFDR, é um aliado do governo de Bangui. Por isso, pedimos ao governo que passasse a mensagem.
Amanhã teremos cerca de vinte capacetes azuis junto ao campo. Militares de elite togoleses. Com ordens claras para que não deixem espaço para nenhuma acção violenta por parte de grupos irregulares.
Esquecemos de lembrar aos rebeldes que hoje é Domingo. É verdade que não há tradição de combater de noite, aqui nestas paragens. Diz um dos meus conselheiros que a guerra fecha às seis da tarde, para a oração do fim do dia e para descanso. Mas não fecha aos Domingos.
Despachei para Bangui o meu director de gabinete e o o conselheiro político sénior. No seguimento das minhas conversas telefónicas de ontem com o Primeiro-Ministro Toadera, os enviados especiais reuniram-se, esta tarde, com o PM e uma equipa de crise. Estiveram também com a embaixador francês e com as ONGs que operam em Birao. Lancei, entretanto, um apelo para que os reféns sejam libertos sem demoras. São jovens de bem, dedicados e com reconhecido trabalho social de apoio às comunidades de Birao.
Entretanto, a notícia dos raptos foi título grande nos meios de comunicação social franceses. O facto de os raptores procurarem vítimas dessa nacionalidade foi o tema central.
Enquanto tratava deste assunto, a tripulação do helicóptero que havia sido enviado para Birao, como apoio à procura dos criminosos, teve ontem uma noite muito dramática. Um dos pilotos faleceu, três outros estão em estado grave. Em coma. Beberam um líquido adquirido sabe-se lá onde, mas que tinha um rótulo de uma bebida espirituosa normal.
Foi o segundo incidente do género em duas semanas. Com pessoas da mesma nacionalidade. Embora estivesse em Vevey, por outros motivos profissionais, passei uma parte da manhã a falar com Moscovo. Mais tarde, com Nova Iorque e com a minha área de operações. A pedir que as autoridades do país dos pilotos sensibilizem as suas gentes, para que estes casos tão trágicos não voltem a acontecer.
Durante a noite, foi preciso evacuar, para Nairobi, um Major do contingente russo. Tinha ingerido, na véspera, uns copos bem cheios de um líquido, falsificado na Nigéria, mas com um rótulo de gin ou outra coisa parecida. Entrou em estado de choque, em coma profundo, com hemorragias internas, paralisações orgânicas, às portas do outro lado da vida.
Os nossos dois jactos estavam muito longe, um em Entebbe, o outro em Djibouti. Foi preciso mobilizar um dos nossos velhos Antonov 24, um avião que mais parece uma mula de montanha. Levou oito horas a chegar a Nairobi. Via Bangui, onde pousou às quatro da manhã, sem que houvesse abastecimento de combustível disponível no aeroporto. Depois, Entebbe, do outro lado das árvores, muito para além das florestas sem fim. Finalmente, o Quénia, que, primeiro, não deu autorização de aterragem, depois, aceitou o nosso SOS, mas deteve os pilotos. Não tinham visto.
O Major ainda estava vivo, depois de tantas voltas. A equipa médica norueguesa conseguiu mais um milagre. Mas, em que estado ficará este jovem oficial, depois de tudo isto?
Se a falsificação, muito frequente na Nigéria, tiver sido à base de metanol, as consequências são gravíssimas. Uma pequena dose de metanol provoca cegueira, uma dose maior leva a problemas irremediáveis. A vida nestas terras vale pouco, meus amigos.
Hoje, ao fim do dia, recebo a notícia do general que comanda as minhas tropas que há mais dois militares russos, da mesma equipa, em situação semelhante. Que drama! Quantas garrafas terão comprado, nos mercados sem lei destas terras sem rei, estes homens da terra do vodka e inocentes nas terras em que é preciso andar de olho vivo?
Mandei proibir todo o consumo de bebidas alcoólicas no campo russo.
E amanhã, bem cedo, um avião mais estará a fazer o percurso da selva para Nairobi.
O diabo do galo começou a cantar antes das quatro da manhã. Não muito longe da minha tenda de campanha. Mais tarde, tive que recomendar ao comandante do Sector Militar de Birao, um major togolês, que pensasse na hipótese de oferecer um relógio ao dito bicho plumado. Ou, que, pelo menos, os seus homens o tentassem educar, de modo a respeitar as visitas vindas de longe.
Depois do pequeno almoço, às seis, fiquei a saber que o galo, as galinhas e mais umas cabras, todos muito vivos, tinham as horas contadas. Estavam no menu de hoje à noite. Sem serem convidados. Seriam o prato forte, na comemoração das medalhas da ONU que haviam sido atribuídas por mim aos militares do Togo, ontem ao fim do dia.
Excelentes militares, sempre de faca afiada, que em Birao, no centro de África, cada um trata de si.
A piroga está a atravessar a fronteira. Vem da RCA, a República Centroafricana. Deste lado, estamos no Chade.
Na estação seca, são precisos três dias para chegar, quer se venha de Bangui ou de N´Djaména. Nesta altura do ano, só se consegue assentar os pés neste sítio se uma parte do trajecto for feita de mota e piroga. Põ-se a mota em cima da piroga, em certos locais, para que se possa atravessar.
Eu vim de helicóptero.
Mas mesmo de helicóptero, é uma carga de trabalhos.
A resolução dos conflitos internacionais passa pelos contactos directos entre as várias partes interessadas, pelo diálogo e pela compreensão dos interesses de cada lado. O meu texto da VISÃO on-line de hoje é dedicado a este tema.
Escrevo a partir de uma perspectiva mais ampla da vida e das questões do nosso tempo. Creio que é bom abrir horizontes, numa altura em que a política portuguesa está cada vez mais reduzida ao que não tem importância.
Foi um texto escrito num TGV, entre Paris e Londres. O bilhete em classe económica custou 174 Euros. Convém ter presente estes valores, para que se perceba o que significa ter alta velocidade que funcione. Será que o português médio pode gastar um montante semelhante num bilhete de comboio?
Ontem foi um dia agitado. Primeiro, foi a viagem para Abéché. O jacto é rápido, mas estreito e com sete passageiros fica muito cheio. 'A chegada, primeiro telefonema na linha de urgência: um dos nossos aviões sem piloto acabara de se estatelar em Goz Beida. Trata-se de um modelo militar, com cerca de um metro ou pouco mais de comprimento, umas câmaras. Mas a primeira notícia foi que "...um avião havia caído."
Felizmente que é bem mais pequeno e muito mais barato do que um 747...
Mesmo assim, custa caro e causou agitação, chamadas telefónicas da presidência da república, do governador, do chefe que é general, de jornalistas...Podia ter caído em cima de muita coisa. Pessoas, casas, vacas, cabras, mesmo ums meras galinhas. Tivémos sorte. Foi esmagar-se perto do quintal do governador local, mas sem outros estragos. Embora pequeno, faz mossa. Mas a maior mossa foi a perda deste aparelho que tanto jeito nos faz, quando se trata de tirar umas fotos dos rapazes maus...
Depois, um dos nossos veículos foi atacado à mão armada em Farchana, no mercado da localidade, nas barbas de toda a gente. Passavam cinco minutos das 11 horas. Como era um carro da equipa de desminagem, tinha explosivos e outras pequenas maravilhas a bordo. Dois homens de metralhadora em punho, bandidos das terras bravas, levaram-no para o Sudão. As autoridades fronteiriças sudanesas colaboraram connosco e o veículo foi recuperado, já do outro lado da raia. O Leonardo, um grande oficial da PSP que é o nosso chefe de segurança na região, organizou uma expedição. Para recuperar a máquina e os bens. Assim acontecerá, mas é preciso ter paciência.
Seguiu-se a reunião com as ONGs internacionais. Para falar do medo que começa a existir, face à possibilidade de raptos. Uma grande nacionalidade ocidental é particularmente visada. Corre o boato, aqui e no Darfur, que esse país paga resgates...Logo, é um bom negócio apanhar gente com esse passaporte...
Continuei o dia tendo um encontro com os guardas prisionais. Ou melhor, com os nossos conselheiros em matéria de prisões. As condições de detenção são abomináveis. Os presos passam o dia acorrentados, para que não se escapem. Mesmo assim, muitos acabam por fugir. Só não precisam de ser guardados os prisioneiros que sabem que se voltarem para a sociedade serão eliminados pelos familiares das suas vítimas. Prisioneiros assim sentem-se em segurança nas prisões desta terra.
Seguiram-se reuniões sobre os direitos humanos, a questão do recrutamento de mulheres para a polícia, os soldados nepaleses que chegaram com armas mas sem munições, os soldados que estão destinados a ser uma força de intervenção rápida e que vieram equipados como se fossem meros sentinelas, o planeamento da transferência de um campo de 28 000 refugiados da zona da fronteira para uma outra localização.
Finalmente, chegou a hora de voltar a N'Djaména. Mais 800 quilómetros de distância a percorrer. No que seria para muitos um fim de dia bem preenchido. Mas não. Na capital, havia outras matérias à espera. Falar com Nova Iorque, enviar o telegrama das actividades do dia, ver em que ponto está a investigação para apanhar uns tipos que gostam de dar uns tiros de metralhadora nos trabalhadores humanitários, falar para Bangui, ver se os embaixadores do Conselho de Segurança sempre podem visitar o Leste em Outubro, etc, etc.
Mais tarde, passar ainda, cinco minutos, por uma recepção, só para marcar presença. E provar o vinho branco.
Chegar finalmente a casa, responder a uns mails, telefonar para o estrangeiro, preparar o blog, ler os jornais do dia.
Hoje andei perdido no deserto do Ennedi. As coordenadas que nos haviam dado estavam erradas. O ponto de encontro era mais a Norte, uma questão de 10 a 15 quilómetros. Mas a visibilidade era pouca, menos de um quilómetro. O vento era intenso. O helicóptero andava às voltas. Quando se começa a andar às voltas no deserto, estamos perdidos.
Acabámos por ver três palhotas no meio do nada. Para a velha mulher e as duas raparigas que vieram ao nosso encontro, deveríamos parecer gente vinda de outro sistema solar. Explicaram ao nosso interprete improvisado a direcção. Levantámos âncora.
Mais umas voltas. Só areia, pedras e uns leitos de rios que há milhares de anos que deixaram de correr. Por fim, descobrimos mais um outro grupo de palhotas, maior e com melhor aspecto. Mais mulheres, só mulheres. Disseram-nos que o ponto que buscávamos estava para Norte, a cerca de duas horas a passo de burro. Fiquei na dúvida sobre as duas horas, não sobre o burro, já que nenhuma destas mulheres jamais possuiu um relógio.
Mais buscas. O céu estava cada vez mais fechado e o o horizonte mais curto. Os pilotos queriam regressar à base. Achavam que não havia hipótese alguma. Na última curva, já decididos a abandonar, vimos as viaturas das autoridades locais. Bem alinhadas, à entrada de Bir Douan, subprefeitura de Bahai, há horas à nossa espera.
O carro que me foi destinado tinha uma espingarda automática no sítio onde me devia sentar. E uma espada. O chefe da minha equipa tomou conta da automática. Arrancámos de jipe, para o destino. Depois de uma viagem de jacto, muito cedo de manhã, seguida de um percurso de avioneta, depois o helicóptero, agora era a vez de viajar num todo-o-terreno. De luxo, devo dizer, novo, em excelente estado. O meu condutor era um tenente-coronel. Que falava um francês suficiente. Gente dura.
Como estamos em pleno Ramadão, não era educado estar a beber em frente dos anfitriões.
O vento era cada vez mais forte e seco.
Foi uma sova a sério.
Para que o leitor não se perca, aqui ficam as coordenadas do ponto de encontro: Latitude Norte 15 graus 50 minutos 47 segundos; Longitude 22 graus 43 minutos 51 segundos. Se for ao mapa, fica a perceber o que é andar perdido nestas paragens.
Procedi ontem à condecoração dos 400 militares irlandeses que servem na missão que dirijo. Foi na sede do sector Sul, em Goz Beida. Uma localidade amena, longe do deserto. Com temperaturas mais fáceis de suportar.
Embora esta seja a estação das chuvas, por isso, menos quente, foi decidido fazer a parada às 08:30, antes da hora de maior calor. Em trinta e cinco minutos, que foi quanto durou a cerimónia, 51 militares tiveram que ser evacuados, por se sentirem mal ou mesmo, por haverem perdido os sentidos. Quando discursava às tropas, o capitão que comandava a primeira companhia, e que estava mesmo à minha frente, desmaiou e caiu para a frente, como se fosse uma tábua. Tinha estado a chover umas horas antes e a terra estava fofa. Não impediu, no entanto, a fractura do nariz. Levaram-no para a enfermaria, inconsciente e enlameado.
A temperatura era apenas de 36 graus, em virtude da hora matinal. Mas para um irlandês, que sonha com as chuvas frias da sua terra, são muitos graus.
Fez-me impressão estar a discursar e a ver os homens a cair. Não era o poder da palavra. Depois de quatro meses no Chade, os soldados da Irlanda ainda não sabem resistir aos raios solares. Mas são uns militares excelentes, muito apreciados por todos os humanitários e pelos refugiados que beneficiam da sua protecção.
Falámos rapidamente do referendo sobre o Tratado de Lisboa. A grande maioria destes militares aprova o texto e acredita que o Sim tem hipóteses.