A primeira paragem, depois da entrada em Portugal, foi na área de serviço do Fundão, na A23, a caminho de Lisboa. Estava quase deserta, fora três rapazolas, espetados no exterior, à entrada da loja. Pelo aspecto, fiquei a pensar que deveriam ser de etnia cigana. Pena.
Fui logo abordado, com a insistência que visa intimidar. Queriam que lhes comprasse um dos i-phones, telemóveis de topo, novos em folha mas que visivelmente haviam conhecido uma outra vida, no estabelecimento comercial donde haviam sido muito provavelmente furtados.
Um casal belga, no carro que vinha atrás de mim, foi o centro de atenção seguinte. Atemorizados pelos jovens, voltaram de imediato a entrar no seu automóvel e arrancaram a toda a pressa.
Tinham tido a sua primeira experiência como turistas em Portugal.
Ontem à noite tivemos por aqui um crime de morte. Uma criança e dois adultos foram baleados à porta de casa. Vieram a falecer no local.
Hoje, isso foi notícia grande. Até a BBC World falou do drama, no seu horário mais nobre, das grandes notícias.
É acontecimento raro, no entanto. Nesta terra estrangeira, onde agora vivo.
Quem, como eu, segue o que se passa em vários países europeus, num acompanhamento quotidiano, sabe que um dos países que, nos últimos anos, se transformou numa sociedade de sangue e violência é Portugal. Não se fala muito nisso. Mas é um facto. A violência, sobretudo entre familiares, é actualmente um fenómeno frequente. Mas não só. Existe muita violência por associada a vários tipos de actividades criminosas.
Existe, igualmente, muita preocupação em escamotear o que se passa. Por várias razões.
Nos últimos dias surgiram, de novo, informações sobre a rivalidade institucional entre a PSP e a GNR. Foram mencionados casos concretos, mas que na realidade são reveladores de tensões profundas.
Várias vezes tive a ocasião de dizer que é preciso encarar a questão da organização da segurança interna com objectividade e coragem política. Aqui, como no resto, não existem monstros sagrados, intocáveis. Existem, isso sim, instituições que têm um passado histórico que é preciso respeitar, mas que devem ser vistas à luz das realidades de hoje. Essas realidades exigem que se racionalize o sector, que se integre o que deve ser unificado e que se defina um plano para o médio prazo, que racionalize o sector da segurança interna e permita obter ganhos de eficiência.
As rivalidades institucionais revelam várias coisas: um ministério de tutela fraco; interesses pessoais, dos dirigentes das instituições, a sobreporem-se ao interesse nacional; nivelamento por baixo; maior preocupação com questões de imagem do que com o combate efectivo à criminalidade; e, para rematar, uma concepção da segurança e da ordem pública que tem mais que ver com uma dicotomia campo-cidade que já não existe do que com a evolução da criminalidade e dos desafios e ameaças.
Estive em Braga nos últimos dois dias. O motivo que me levou a essa cidade foi a realização de um seminário internacional sobre as ameaças à segurança de África e da Europa que resultam da situação de instabilidade e de má governação no Sahel.
Tive a oportunidade de partilhar a minha análise desta problemática com os outros participantes e também com um grupo de alunos de relações internacionais da Universidade do Minho. É verdade que cada país do Sahel é um caso, mas existem vários pontos comuns. Um deles, passa pelo cruzamento de um meio ambiente cada vez menos favorável à produção de alimentos, em virtude da desertificação crescente – o Deserto do Sahara avança em direção ao Sul cerca de 48 quilómetros por ano – com um crescimento muito elevado da população da região. Dois em cada três habitantes do Sahel têm menos de 25 anos de idade, o que irá contribuir, por vários anos, para que a população continue a crescer de modo acelerado.
Como não há meios de vida, muitos desses jovens são, pura e simplesmente, candidatos à emigração. E uma pequena franja, mas significativa, será apanhada pelas redes radicais e pelo crime internacional organizado.
Um especialista em matéria de segurança, antigo colega meu das Nações Unidas, dizia-me há dias que o Sahel é terra de contrabandistas armados. Como qualquer bom velho contrabandista, os que percorrem o Sahel fazem “negócio” com tudo o que lhes passa à mão de semear: armas, drogas, candidatos à emigração ilegal, raptos, tráfico de gado, tabaco, combustíveis e bens alimentares. Um grupo ou outro mistura uns pós de fanatismo religioso ao ”negócio”, como maneira de lhe dar uma “justificação moral”.
Os montantes em jogo são elevados. No caso recente da libertação de quatro franceses que estavam sequestrados no Níger há cerca de três anos, fala-se num resgate na ordem dos 20 milhões de euros. É um montante impressionante, que mostra bem o que está em jogo.
Mas a verdadeira ironia da situação reside no facto de uma parte desse dinheiro se destinar à compra de armas e veículos que irão permitir aos bandidos raptar mais franceses e atacar as tropas francesas e internacionais que se encontram em missão no Mali.
Vale a pena analisar o relatório Anual de Segurança Interna 2012, que acaba de ser publicado pelo Gabinete do Secretário-geral do Sistema de Segurança Interna. O documento está disponível no sítio:
Fica, em seguida, uma breve referência a números retirados do relatório bem como um comentário geral.
Crimes mais participados em 2012:
Furto em veículo motorizado - 32.772
Ofensa à integridade física voluntária simples - 26.430
Condução de veículo com taxa de álcool igual superior a 1,2 - 25.365
Furto em residência com arrombamento, escalamento ou chaves falsas - 25.148
Violência doméstica contra cônjuge ou análogos - 22.247
Condução sem habilitação legal - 15.844
Furto de veículo motorizado - 15.839
Ameaça e coacção - 15.755
Furto de metais não preciosos – 15.171
Note-se ainda o número de participações relativas a incêndio, fogo posto em floresta, mata, arvoredo ou seara: 9.333. Trata-se de um valor extremamente elevado.
Em 2012, a criminalidade violenta e grave (CVG) apresentou um total de 22.270 casos. De entre os crimes que constituem esta categoria, destaca-se 419 casos de rapto, sequestro e tomada de reféns, 375 casos de violação, 995 roubos a residências e 14.452 assaltos na via pública.
Por outro lado, a maioria dos crimes, das manifestações e das intervenções tiveram lugar nas áreas de actuação da PSP, o que levanta uma vez mais a questão premente da reforma e da racionalização das instituições de segurança interna.
Tenho muitas dúvidas sobre a maneira como as estatísticas sobre a criminalidade e os incidentes de segurança são coligidas em Portugal. Receio que a dispersão das forças policiais, que nos caracteriza, se traduza numa situação em que os dados recolhidos por cada entidade se mantêm dispersos, acabando por não ser integrados numa base única e coerente.
Ainda sobre o texto de ontem e a insegurança, os jornais de hoje informam-nos que a PSP deteve dois indivíduos estrangeiros, no domingo, que parecem ser os autores materiais de uma série de assaltos a residências. O material na sua posse revela técnicas altamente sofisticadas e, igualmente, o produto de muitos dos seus roubos.
Um dos indivíduos foi preso quando tentava fugir de Portugal.
Na segunda-feira, os presos foram apresentados a um juiz. O meritíssimo ouviu-os e mandou-os em liberdade, ficando apenas sujeitos a apresentações diárias às autoridades. Sim, assim mesmo!
A reflexão que isto provoca é muito simples: a polícia faz o seu trabalho, mas a justiça dá a impressão de viver num outro mundo. Ou somos nós que não estamos a entender o desenrolar da fita?
Todos os que sabem sobre questões de segurança em Portugal reconhecem que tem havido um aumento significativo da criminalidade violenta.
Mas não é apenas isso que deve ser motivo de preocupação. O que é deveras assustador é a incapacidade revelada pelo Ministério da Administração Interna. O MAI é hoje um ministério à deriva, incapaz de definir e fazer aplicar uma política de segurança dos cidadãos. A PSP está mais interessada em competir com a GNR do que em combater o crime. A GNR está mais interessada em relações públicas do que em cooperar com a PSP. Ambas, mas sobretudo a PSP, estão mais preocupadas em ultrapassar a Polícia Judiciaria do que na coordenação de esforços.
O Ministro, no topo de tudo isto, é um mero verbo de encher. Porém, nem todos estão descontentes com a sua falta de competência e de liderança. Se se fizesse uma sondagem junto dos gangues, teria uma cotação muito elevada. Eles sabem apreciar quem não está à altura das funções que exerce.
A experiência adquirida pelos militares brasileiros no Haiti, no quadro da missão da ONU, tem sido muito útil para o combate ao crime urbano no Rio de Janeiro. E tem havido uma excelente articulação entre eles e a polícia. Agora, há que levar o trabalho até ao fim.
Entretanto, lembro que a experiencia trazida do Haiti foi a do combate ao crime organizado. Gangues de vários tipos, mas todos muito violentos, dominavam sectores importantes de Port-au-Prince. As forças da lei e da ordem pública não podiam entrar nesses bairros. A ofensiva, lançada pelos capacetes azuis, demorou meses e causou muitas perdas, com muitos bandidos mortos de armas na mão.
Também aconteceram estórias do arco-da-velha.
A determinada altura, a secção de informações da missão da ONU descobriu aquilo que lhe parecia ser o quartel-geral dos criminosos. Era uma espécie de bunker, num dos bairros mais centrais e mais perigosos do centro da cidade. Havia entradas e saídas de gente, a todo o momento, assim o mostravam as fotografias tiradas, a uma certa altitude, dos helicópteros. E parecia mesmo ter fossas subterrâneas, provavelmente para que os bandidos pudessem dispor dos que eram sentenciados.
O ataque demorou semanas a ser preparado. Tudo muito secreto. Teve, finalmente, lugar, numa madrugada feia. Foi uma operação estranha. Não houve resistência por parte dos ocupantes. E o bunker era afinal um edifício de latrinas públicas, construído por um consórcio de ONGs. Acabou por ser, na verdade, uma operação de caca.