Passo uma boa parte do meu tempo dentro desta máquina. Não consigo explicar a relação que tenho com este Learjet, sinto-me apenas obrigado a utilizá-lo. Rentabilizar, talvez seja essa a palavra.
As Nações Unidas, ao colocarem à disposição pessoal de gente como eu um brinquedo deste tipo, eu que decida o quero fazer com este bicho muito rápido e muito prestigiante, encontraram a maneira mais eficaz de nos escravizar. Quando se tem um jet à porta de casa, quem diz que não a todo o tipo de deslocações?
Sinto-me um escravo deste pássaro metálico.
E dos helicópteros.
Ontem e hoje, passei a minha vida fechado nestas coisas. Voámos para Birao, passámos a noite na tenda que já revelei neste espaço, depois fomos de helico, esta manhã, para Haraze-Mangueigne e para Daha, zonas de refugiados, e já ao fim do dia, voltámos a Birao, voando sobre a parte desértica da RCA, numa zona infestada de rebeldes, para seguir depois para N'Djaména.
No voo de regresso, até os meus polícias morriam de sono.
Há quem diga que temos uma vida invejável. Que andamos por sítios onde mais ninguém, vindo de fora, põe os pés. Talvez. Não há, de facto, muita gente que ande por estas terras onde os tiros são o meio de comunicação mais usual. Mas o que me faz inveja, quando estou cansado como hoje, depois de muito andar, de falar com funcionários jovens das ONGs e da ONU, que vivem no meio de cobras, às dezenas, nas camas, nos lençóis, debaixo da mesa, nos corredores, nas latrinas, animais estranhos que congelam o sangue dos mais bravos, é a paz de alma que os meus amigos possuem, aí, pelas terras do Norte do mundo, quando se perdem nos shopping centres e nos Ikeas e pensam que os problemas do mundo são os definidos pelos Sócrates, Louçãs, Portas, Jerónimos e uns senhores de um partido que vive à deriva. Sem contar os alegres e mais, os sombrios do cavaco seco.
Permitam-me, por favor, que me sinta um pouco diferente, esta noite.
Era suposto ser um Domingo tranquilo. O céu estava de um azul sem manchas. Faz sonhar. Mesmo nestas terras. O harmatão, este ano, tem-nos poupado. Não tem havido a poeira no ar, habitual nesta estação. Os dias começam frescos, com cerca de 16 graus, aqui na capital do Chade, depois aquecem, vão aos trinta e cinco ou isso por aí à volta. Hoje era dia de escrever a minha prosa para a Visão desta semana. Tinha combinado que continuaria a reflectir sobre o terrorismo.
O embaixador inglês, residente em Youndé, chegou a meio da manhã. Para umas reuniões comigo e com outros embaixadores. Pedi ao meu director de gabinete que o recebesse. Uma colega sénior das Nações Unidas havia chegado ontem à noite. Está de passagem, a caminho de Bangui. O meu protocolo teve a missão de se ocupar da colega. Tudo para me permitir alguma pausa.
Acabou por não ser bem assim. Depois do incidente no campo de refugiados de Gaga, ontem, havia que iniciar um inquérito, hoje. Mandei uma equipa de investigadores. O Leonardo, um Subintendente da PSP aqui em serviço, fazia parte da equipa. É um excelente profissional, que muito honra a presença portuguesa. Entretanto, mais a Norte, em Iriba, a base de CARE, uma ONG com quem trabalhamos, foi atacada por homens armados, para roubar o que fosse possível, incluindo as viaturas. A nossa Polícia (DIS) saiu em perseguição. Um dos agentes foi ferido num pé. Lá foi preciso organizar uma evacuação sanitária para Abéché, por helicóptero.
No sector Sul, em Birao, as tropas do governo, um pelotão, foram atacadas por cerca de cem homens armados. 45 quilómetros ao Norte da cidade, a caminho da fronteira com o Chade. Uma zona com mais rebeldes do que habitantes. Um recorde. Mais uma intervenção a prever, do nosso lado.
Entretanto, o texto para a Visão lá foi avançando. Ao princípio ficou muito técnico, quase parecia um míni relatório sobre a problemática da análise das informações de segurança. Tive que fazer várias passagens, cortar a torto e a direito, que 3500 caracteres não dão muito espaço. Continuei essa tarefa, até me lembrar que havia prometido telefonar à minha filha mais nova, que está a residir em Espanha. Segunda ou o mais tardar, Terça, prometera eu. Com todas as surpresas da semana, a coisa passou-me. A promessa tornou-se uma de mau pagador. Peguei no telefone e pedi que me desculpasse. É que eu tenho alturas em que nem sei a quantas ando.
Tive hoje oportunidade de constatar que as terras do Sahel estão demasiado secas, numa estação em que ainda deveriam existir pastagens e tons verdes. Foi um mau ano agrícola, o que terminou há dois ou três meses. As chuvas foram poucas e mal repartidas.
Vai ser necessário providenciar ajuda alimentar. Muito em breve e por cerca de sete meses.
Mais um problema, a juntar ao da insegurança. Na verdade, passara uma parte da manhã a estudar os casos mais recentes de raptos e outros casos de criminalidade grave. Casos que têm um impacto enorme sobre o trabalho das agências humanitárias. Que afastam os trabalhadores das ONGs. Que avolumam os receios.
Agora, será fome e violência, seguidos de mais violência e mais fome.
A cimeira sobre a segurança alimentar, que hoje começou em Roma, por iniciativa da FAO, é a terceira, esta década, sobre os problemas da fome no mundo. Mas a verdade é que continuamos a ser cegos, não notamos, nem queremos ver, que este é um problema que poderia ser resolvido. Existem conhecimentos suficientes e técnicas adequadas para garantir um mínimo para todos. Faltam, apenas, os líderes à altura. A coragem das decisões, uma outra visão da vida.
Ainda na semana passada, a equipa militar de hidrologistas noruegueses, que está agora em missão no Chade, descobriu um lençol de águas subterrâneas às portas da cidade de Iriba, no deserto. Iriba vive na miséria, com falta de água, sem conseguir dar de beber aos seus habitantes, que nem vale a pena pensar nos animais e nas plantas. É uma terra de areias e de securas. Sem agricultura, com os camelos perdidos nas pedras que cercam a pobreza das pessoas.
E a água existe. Trata-se, simplesmente, de ter os meios que nós temos, para a encontrar. O resto é uma questão de furos, tubos e decisões políticas equilibradas. Que o acesso à água é uma das fontes de desigualdades sociais.
É, um pouco por toda a parte, a mesma situação. Onde hoje se morre de fome e sede, com juízo e meios técnicos, é possível, amanhã, produzir as culturas que fazem viver.
Mas também há que evitar um consumo excessivo, uma demografia sem controlo e uma pecuária sem limites.
Dia Nacional da Polónia, que celebrei em Iriba, no Nordeste do Chade, com o contingente militar polaco. Os soldados estão em campanha há sete meses, sem férias, no Sol do deserto. São tropas de elite, é verdade. Já deviam estar de volta a casa. Mas a chegada dos homens da Mongólia, que os devem substituir, está muito atrasada. Na melhor das hipóteses, apenas 118 deverão estar na zona de operações, por alturas do fim do mês. Deveriam ser 800, mais o equipamento pesado, de combate e de logística.
É preciso começar a desmobilizar os polacos, para que possam chegar a casa antes das festas. Como são gente muito católica, este calendário é importante.
A tensão resultante da incerteza começa a fazer-se sentir. Stress e homens armados, mesmo quando são soldados excepcionais, não é uma boa combinação.
A ambulância, o motor a quatro tempos e o motorista-socorrista, no parque de estacionamento do hospital de uma ONG, num campo de refugiados a 45 quilómetros ao Sul de Farchana, no Leste do Chade.
Os refugiados são do Darfur, a ONG recebe apoios ingleses, a imaginação é de todos.
Funciona. A taxa de mortalidade materna, por exemplo, atingiu um nível muito próximo do europeu.
O grande desafio é tornar este tipo de serviços acessível às populações autóctones, para que não exista uma disparidade gritante entre os serviços prestados aos refugiados e a falta de condições, no que respeita às populações locais.
A preocupação com os refugiados tem que ser acompanhada por apoios concretos às aldeias vizinhas dos campos.
Agora que os chifres já entraram para a história do parlamento português, queria contar-vos uma estória de chavelhos. Dos verdadeiros. Aqui não se desce ao nível do figurado.
Em Janeiro um bovino vivo, de carne e osso, valia, no mercado de N' Djaména, quase 200 Euros. Havia erva, a estação das chuvas tinha terminado três ou quatro meses antes. Os animais apresentavam um ar farto e saudável.
Hoje, com o início das chuvas muito atrasado, os animais não têm que comer. Estão esqueléticos e sem forças. A minha base é no caminho para o matadouro, na entrada Norte da cidade. É frequente ver os animais a comer lixo, papel e plástico. As estrumeiras são agora as terras de pasto. Muitos dos animais não tem a energia suficiente para chegar à zona do abate. Morrem pelo caminho. Quem quiser pagar 15 Euros, compra uma vaca. De pele e ossos.
É um tempo de fome e de miséria para os animais e para os donos. São populações nómadas, tão magras como as suas vacas. E tão pobres que nem se atrevem a abrir a boca, para contar as suas mágoas. Morre-se em silêncio, que assim é a vida de quem anda nas terras das areias sem fim.
A estupidez humana não tem limites. As provas desta verdade são visíveis todos os dias.
A falta de previsão e de capacidade de antecipação também não conhecem linhas de demarcação. Tudo é possível.
Hoje, por exemplo, o avião que tínhamos de prevenção em Abéché, estava com o depósito vazio. Em plena zona operacional, muito longe da capital. Como era urgente, perderam-se duas horas, até que estivesse pronto para voar. Quando o estava, já não era preciso. A oportunidade tinha sido perdida.
Ontem, uma das nossas colunas, no deserto do Norte, bem junto à fronteira com o Sudão, viajava do campo de refugiados de Oure Cassoni para Bahai. Vejam no Google. Várias viaturas de agências humanitárias. A viatura da frente fazia a protecção armada. Como já haviam feito o trajecto umas quinze vezes sem que houvesse qualquer ataque, iam descontraídos. Não havia viatura de protecção armada no final da coluna.
Ora, o local é uma zona de movimentação das guerrilhas sudanesas. Ontem, a décima sexta vez, os rebeldes atacaram. Concentraram-se, evidentemente, na última viatura da coluna. Um 4X4 do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Adeus, carro meu.
A escolta, na primeira viatura, ainda tentou uma perseguição. Inútil. Os rebeldes entraram imediatamente em território sudanês. No passado, a escolta teria ido no seu encalço, independentemente da linha de fronteira. Mas comigo, não. Imaginem que eram interceptados pelos guardas fronteiriços do Sudão...
Uma vida sempre a lutar. Sobretudo para quem anda pelos desertos da vida. Quando aparece uma poça de água, é preciso aproveitar. Com elegância, que tudo deve ser feito com graça e a calma dos sábios.