Esta foi uma terça-feira de Carnaval que passou despercebida. A atenção de muitos está focada noutras questões. A preocupação e a solidariedade com a Ucrânia deixam pouco espaço para festas e brincadeiras.
Também deveria haver solidariedade para com o povo russo, que sofre, e irá ainda sofrer mais, por causa da política criminosa e ditatorial de Putin. Não podemos confundir um povo com os bandidos que controlam o poder, para satisfazer as suas loucuras e a sua ganância.
As poucas imagens que nos chegam do Cazaquistão – a ditadura corrupta tem estado a impedir o acesso à internet e às redes sociais – mostram pelo menos duas coisas.
Primeiro, que se trata de uma revolta popular generalizada, contra um regime que veio directamente dos tempos soviéticos e que tem roubado o país a torto e a direito. Um regime que serve essencialmente uma família, a de Nursultan Nazarbayev, que esteve no poder na era comunista, desde 1984, e depois foi presidente da república de 1990 a 2019.
Segundo, que as forças armadas e a polícia dispararam a matar contra os manifestantes. Não mostraram ter qualquer tipo de respeito pela vida dos seus concidadãos. Também revelaram que não têm nenhum tipo de preparação para responder, de modo não-letal, a manifestações de massas.
Estas fotos surgiram no mesmo dia em que se lembrava o ataque contra o Capitólio, nos Estados Unidos, que há um ano tentou subverter o processo democrático americano relativo à eleição presidencial. Também nessa altura, massas de indivíduos atacaram as forças da ordem e um edifício que é o símbolo da democracia representativa americana. Esses indivíduos não podem ser comparados, nos seus motivos, aos manifestantes que agora saíram à rua em quase todas as cidades do Cazaquistão. Mas a maneira como as diferentes polícias de Washington responderam ao assalto perpetrado a mando de Trump foi bem diferente do que se viu agora na Ásia Central.
As forças policias americanas têm enormes deficiências. Não são, de modo algum, um modelo, no Ocidente. Mas sabem que não se atira a matar contra multidões de manifestantes, por muito violentos que esses possam ser.
Passei o serão a rever o filme de Charlie Chaplin “The Great Dictator” (1940).
É uma peça genial que deveria ser obrigatório ver e discutir nas aulas de cidadania.
Passados mais de 80 anos, as abordagens feitas no filme, e em particular o discurso final do “ditador”, são de uma grande pertinência. Uma decisão dessas – passar a fazer parte do programa educativo das novas gerações – estaria em consonância com o facto da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos ter considerado “O Grande Ditador” “uma obra cultural, histórica e esteticamente significante”.
A subida não era muito pronunciada. Mesmo assim, o ciclista que veio ter comigo, na parte mais alta da rua, vinha esbaforido. Mal se aguentava nos pedais. Olhei para ele e vi que era uma pessoa de idade avançada. E isso explicaria tudo.
Erro. Na verdade, não explicava nada. O homem, um alentejano de gema, mais ainda do que eu, disse-me que havia nascido, aqui nesta mesma terra, em 1958. Ou seja, eu, que lhe dava perto de oitenta, tive de reduzir a estimativa da sua idade para a realidade dos 63 anos.
Explicou-me que trabalhava no duro desde a idade dos 10 anos. O pai dissera-lhe que na casa deles, só podia comer quem, já sendo capaz, trabalhasse. E ele assim o fez. A escola primária – a 4ª classe – foi feita ao fim do dia, depois de uma jornada de trabalho.
Assim era o Alentejo daqueles tempos, do Estado Novo, que nada tinha de novo nem de moderno, nem mesmo de humano, antes pelo contrário. Assim era a miséria de quem nada tinha, para além da infelicidade de ter nascido numa família pobre.
E o que vi hoje foi um fim de linha de um passado que ainda tem um impacto nas terras mais recuadas. No Alentejo, por exemplo.
Charles Michel, o Presidente do Conselho Europeu, voltou a insistir, agora no Parlamento Europeu, que o incidente do sofá, uma esparrela preparada por Recep Erdogan, para humilhar Ursula von der Leyen e criar uma brecha entre os dois dirigentes europeus, fora acima de tudo um erro diplomático. Está enganado, não foi uma falha da diplomacia. Mostra, isso sim, não ter percebido nem a artimanha de Erdogan nem a importância política da secundarização de Von der Leyen. Está, por outro lado, a prolongar uma crise de liderança muito séria que se vive agora em Bruxelas e que foi inicialmente planeada pelo presidente turco.
Não é apenas o facto de Erdogan ter pouca consideração pelas mulheres enquanto líderes políticos ou mesmo, pelas questões da igualdade. Isso também conta. Mas não nos podemos esquecer que ele tem o poder que tem e chegou onde chegou porque é matreiro. Sabe como agir para criar tensões no seio dos seus adversários. Dividir para reinar. Sabe também aproveitar rivalidades latentes que possam existir do outro lado da mesa e como contribuir para o seu agravamento.
Charles Michel precisa que um conselheiro lhe diga que é fundamental corrigir o erro. E a correção desse erro começa pelo reconhecimento das causas e razões que levaram à situação delicada em que foi colocado.
Deve também ser ajudado a compreender que quando se trata com gente como Erdogan – ditadores com sucesso na vida, manipuladores de alto gabarito – todo o cuidado é pouco.
Hoje, num bom número de cidades russas, o povo saiu à rua, para se manifestar contra a opressão imposta pelo autocrático Vladimir Putin. Numa das cidades da Sibéria, a temperatura chegou aos 50 graus negativos. Mas o frio não impediu as pessoas de se reunirem na praça principal, para clamar pela liberdade.
Admiro estas pessoas, e todos os que, em regimes autoritários, têm a coragem de se manifestar abertamente contra os seus ditadores. Pergunto-me se teria a mesma coragem. E convido os meus amigos a interrogarem-se da mesma maneira.
A liberdade individual é actualmente uma aspiração muito forte. Só as ditaduras mais ferozes conseguem calar as pessoas. Infelizmente, ainda há muitas assim.
Como o tenho escrito várias e repetidas vezes, considero o respeito e a protecção dos direitos humanos de cada cidadão uma obrigação fundamental de um Estado democrático. Para mim, esta questão é uma prioridade política.
Por isso, sinto-me profundamente indignado com as sentenças que foram hoje decretadas contra duas mulheres excepcionalmente corajosas.
Na Arábia Saudita, a activista dos direitos humanos Loujain al-Hathloul, uma jovem de 31 anos de idade, foi hoje arbitrariamente condenada a cerca de seis anos de prisão efectiva. Tem sido uma voz incómoda e o regime não perdoa.
Na China, Zhang Zhan, de 37 anos, jornalista independente, recebeu uma sentença que a fechará quatro anos numa prisão, por ter feito reportagens sobre o início da pandemia em Wuhan, sem passar pelos canais da censura oficial.
Já sabíamos, é claro, que ambos os regimes são ditatoriais. Mas isso não deve ser uma desculpa para que fiquemos silenciosos. É essencial reagir perante cada novo caso. Cada violação da liberdade individual, de cada um de nós, é um drama.
Os analistas políticos passam muito tempo a estudar as imagens que as reuniões de líderes produzem. Sobretudo quando se trata de um tête-à-tête, como hoje aconteceu em Sochi entre Vladimir Putin e Alexander Lukashenko. A análise dessas fotos diz muito, a quem sabe destas coisas, sobre o estado de espírito dos protagonistas. As da reunião de hoje mostraram que o dirigente russo teve pouca paciência para as longas conversas de Lukashenko. A agitação das pernas e as expressões do rosto revelaram essa impaciência. Dir-se-ia que considera o bielorrusso como um perdedor, que mais tarde ou mais cedo terá que ser substituído.
A minha experiência de contactos com ditadores ensinou-me que não gostam de líderes que deixam escapar o poder. As ruas de Minsk mostram isso mesmo. Lukashenko perdeu o controlo da rua. Como também perdeu o controlo da propaganda, algo que um político arguto como Putin considera um erro muito sério.
Alexander Lukashenko andou na escola política dos soviets. Por isso, acredita que uma vez chegado ao poder seria um erro largá-lo. Assim o pratica há 26 anos. E isso impede-o de ver que a população do seu país, a Bielorrússia, quer que ele desapareça da cena política. As eleições deverão ter expresso isso. Só que ele manipulou e baralhou os resultados, de modo a que a falsificação o mantivesse no poder. Os cidadãos estão nas ruas. Apesar da violência da polícia. Nós, neste lado da Europa, devemos dizer a Lukashenko que o tempo dos ditadores à moda soviética já acabou há muitos anos. Mesmo que a União Europeia não tenha a coragem de o declarar abertamente, a opinião pública deve ser clara: estamos com o povo da Bielorrússia e condenamos todas as falcatruas eleitorais e toda a violência contra as pessoas.
Creio que a contagem decrescente para Alexander Lukashenko já começou. E que poderá ser acelerada nos próximos tempos.