A parte “justiça” do caso de Tancos não deve, na verdade, ser comentada. Um número de indivíduos foi constituído arguido, acusados de vários crimes. Cabe agora à administração da Justiça tratar desses casos, um a um. A única observação que se poderá fazer é para rogar que os processos avancem rapidamente, tendo em conta a natureza dos crimes imputados e o tipo de instituição que está no centro da questão. Certos brados são uma ilusão, reconheço, mas devem ser feitos, apesar de tudo.
Mas existe uma parte política, que não pode ser escondida por detrás do biombo da justiça. Essa parte levanta muitas interrogações. Devem ser esclarecidas. A lista dessas interrogações inclui: a responsabilidade política; o funcionamento e a circulação da informação nos órgãos de soberania directamente ligados ao assunto; a responsabilidade militar, de quem mandava e estava na linha de comando; a performance, a disciplina e a motivação de algumas secções do Exército, o que isso implica e exige como medidas de correcção; o sistema de valores que impera em certos círculos com autoridade e que terá levado alguns dos arguidos a pensar que o caso seria abafado pelos grandes do reino.
Só estas questões já dariam pano para muitas mangas, se houvesse uma vida partidária capaz de ir além do nevoeiro mental.
Nos últimos dias, a crise que as Forças Armadas portuguesas atravessam há anos voltou aos cabeçalhos da comunicação social. E uma vez mais, se notou duas coisas, por parte dos políticos. Primeiro, que não há serenidade no tratamento da questão. Segundo, que não existe uma visão estratégica sobre o que devem ser as Forças Armadas de hoje e do futuro. Assim não vamos lá.
A defesa é um dos pilares da Nação e os elementos das Forças Armadas devem devem ser respeitados. A primeira fase do respeito passa por incluí-los, de forma activa e séria, não a fazer de conta, na definição do conceito e da organização da defesa nacional.
O meu post de ontem sobre a Europa da defesa foi lido como um ataque directo a alguns comentadores habituais da nossa praça. Não pode ser. Deveria ser visto, isso sim, como uma crítica sobre a maneira como a questão tem estado a ser analisada.
Ataques pessoais não fazem parte do meu estilo nem cabem nestas páginas.
E não diz respeito apenas ao que se escreve e diz em Portugal. Infelizmente, a questão da defesa europeia é muito mal tratada em vários jornais e televisões dos Estados membros. O tema dos 2% do PIB é, na maioria dos casos, o aspecto central por onde esses comentadores pegam no assunto. Ora, mesmo isso, tem muito que se lhe diga. Pode-se gastar 2% do PIB nacional em rubricas erradas ou secundárias para a defesa do país. Veja-se o que se passa na Grécia, onde uma boa parte do dinheiro gasto com as forças armadas se destina ao financiamento de pensões de reforma ou para comprar tanques que servirão para combater uma guerra do estilo do século XX.
Continua a discorrer-se frequentemente sobre a Europa da defesa. Menciona-se a pressão vinda de Washington, a existência da NATO, as indústrias de defesa, as diversas iniciativas que entretanto alguns líderes da UE vão ensaiando, como PESCO, a relativa fraqueza das diferentes forças armadas europeias, com excepção das britânicas e francesas, e assim por diante.
Tudo isso é importante.
Mas a defesa é antes de tudo uma questão de opção política a curto e médio prazo e de visão estratégica, no que respeita ao futuro. O projecto comum europeu precisa de ter uma vertente de defesa que seja partilhada pelos Estados membros e que seja autónoma em relação aos interesses de parceiros exteriores à Europa. Temos que cuidar de nós. Temos que investir na nossa segurança colectiva, com base nos nossos interesses.
Há que definir quais são esses interesses. E ter bem presente que os aliados de ontem e de hoje podem ter interesses muito diferentes dos nossos, no futuro. É de prever que a evolução vá nesse sentido.
Também é necessário fazer uma avaliação a sério dos riscos externos que poderão ameaçar a Europa no futuro e, em seguida, determinar qual deverá ser o papel do sector da defesa na prevenção, dissuasão, contenção e na resposta a esses riscos.
Como é igualmente imprescindível ter uma posição clara sobre o papel que as forças armadas europeias poderão desempenhar na cooperação internacional para a paz e a segurança.
Por tudo isto, digo repetidamente que a questão europeia de defesa tem que estar mais no centro do debate. É um assunto estratégico. Não é um problema meramente técnico-militar, nem simplesmente orçamental. Acrescento que deve igualmente começar pela política e por uma visão a prazo. Estas matérias exigem tempo para poderem ser concretizadas. Deve aprovar-se agora aquilo que se quer ter operacional dentro de dez ou quinze anos.
O diário belga “La Libre” é um jornal moderado e respeitado. Organiza frequentemente inquéritos de opinião junto dos seus leitores. Os resultados desses inquéritos são vistos com atenção pela classe política e por quem se ocupa de seguir a opinião pública belga.
Levou agora a cabo um sobre a questão da criação de umas forças armadas europeias. A pergunta era muito clara : deve-se criar um corpo militar europeu comum em substituição das forças nacionais?
Responderam cerca de 8000 leitores. Destes, 49% disse que sim, sem mais, sem hesitação. Também disseram que sim, mas sem pôr termo ou acabar com as forças armadas nacionais, 35% dos inquiridos. Apenas 13,3% por cento se opôs, disse que não à ideia de um “exército europeu”.
Curiosamente, os sem-opinião foram apenas 3%.
Em simultâneo, noto que é no Partido Socialista, nos Ecologistas e em outros movimentos do centro-esquerda da Bélgica que encontro uma posição clara de apoio a um projecto comum de defesa.
Convém reflectir sobre estes números. E lembrar que a questão de defesa é antes de tudo uma questão de opinião pública, ou seja, um tema essencialmente político.
Sou um telespectador acidental, no que respeita aos canais de televisão portugueses. Por várias razões, mas sobretudo pela má qualidade do que se mostra nos nossos ecrãs. Assim, mesmo quando me encontro em Portugal, passo ao lado.
Ontem, num momento de acaso, caí no debate que a RTP 1 chama “Prós e Contras”. Discutia-se Tancos, as Forças Armadas e os diferentes níveis de responsabilidade.
Dos presentes, apenas os dois generais sabiam da poda. O resto era conversa, académica, livresca ou simplesmente fora da substância. Confrangedor. Metiam-se os pés pelas mãos e confundiam-se conceitos básicos. Incluindo, como já vem sendo costume, defesa como se fosse segurança e vice-versa.
Para cúmulo, a moderadora mostrou uma vez mais o pouco jeito que tem para animar discussões que ultrapassem os temas de lana-caprina.
As armas e as munições, em quantidades que mostram que a coisa foi organizada a sério, foram roubadas de um paiol do Exército. Inacreditável!
O tipo de armamento levado pelos ladrões permite praticar actos terroristas de grande impacto. Preocupante!
As autoridades do país onde isto aconteceu limitaram-se, até agora, três ou quatro dias depois do acontecimento, a exonerar uns coronéis. Patético!
Os principais responsáveis políticos, os do lado da governação, mantêm-se calados. Incompreensível!
Do outro lado, os da oposição, diz-se umas baboseiras inconsequentes e pela rama. Incompetência!
Parece que haverá uma audição parlamentar do ministro da pasta. A resposta habitual!
Como também será de prever, dentro do que é a nossa normalidade irresponsável, que da audição não resulte nada de estrutural, para além do ruído a que já estamos habituados. Portugal!
Ando por aí a dizer que o debate sobre as despesas de defesa da Europa não se pode limitar a um indicador apenas.
É verdade que os estados-membros da NATO, a começar pelos europeus, se comprometeram na Cimeira de 2014 no País de Gales a aumentar os orçamentos públicos destinados à defesa, de modo a atingirem o montante de 2% do PIB nacional. Gradualmente, aliás, tendo como horizonte o ano 2024.
Atenção, porém!
Esta percentagem é um valor indicativo, uma ordem de grandeza que serve de referência política ao nível do secretariado da NATO. Neste momento, apenas os EUA, o Reino Unido, a Grécia, a Estónia e a Polónia atingem esse patamar. Mas a percentagem não chega. É preciso que a estrutura das despesas tenha em conta as necessidades actuais das forças armadas, tendo em conta os novos tipos de ameaças e a ênfase relativa que deve ser dada a cada dimensão da defesa. Gastar dinheiro com estruturas inadequadas, quadros conceptuais errados e meios obsoletos é mero desperdício. Uma parte importante do debate terá que passar por essa análise da estrutura das despesas.
O Presidente da República disse hoje que a Marinha portuguesa não dispõe dos meios necessários para desempenhar as funções de soberania que lhe competem. Infelizmente, isso é bem verdade. E mais ainda, é incompreensível num país que diz que o mar é uma das suas prioridades e um dos seus grandes trunfos em termos de desenvolvimento. Ora, no mundo real, as prioridades e os trunfos são protegidos, com todos os meios e mais alguns. Não o fazer corresponde a falta de coerência política e põe em risco um recurso fundamental para o crescimento e a grandeza do país.