A posição intransigente de Portugal em relação ao chamado governo de transição na Guiné-Bissau está a criar um sério clima de tensão entre o nosso país e a CEDEAO, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental. Esta situação precisa de ser resolvida ao mais alto nível da política externa portuguesa, pelas consequências negativas que tem no que respeita aos nossos interesses naquela região de África.
Mais ainda, dentro da CPLP, Portugal deve trabalhar no sentido de fazer com que o Brasil assuma um papel mais activo na resolução da crise guineense. Uma linha de actuação desse tipo será coerente com o facto do Brasil ter, ao nível da ONU, um papel de liderança nas matérias relativas à Guiné-Bissau, enquanto chefe de fila do grupo de nações que apoiam a consolidação da paz em Bissau.
Ao fim do dia, a Rádio Renascença telefonou-me, por causa de um programa que está a ser preparado sobre a situação na Guiné-Bissau. A verdade, respondi-lhes, é que não tenho acompanhado a evolução recente do caos em que se encontra esse país. A Guiné-Bissau saiu do mapa estratégico internacional. Mesmo do regional, pois na África Ocidental o que conta, neste momento, é o caso do Mali bem como a proliferação dos grupos ligados, de modo mais ou menos real, à al-Qaeda. Quem se interessa ainda pela Guiné? Quem está disposto a perder mais tempo com esse poço sem fundo?
A Guiné-Bissau está de novo numa fase de crise aguda. A violência latente voltou a explodir.
Um dos resultados desta nova explosão: a comunidade internacional, incluindo a União Europeia, está farta das repetidas crises na Guiné. O risco de ver a comunidade internacional perder a esperança numa transição democrática nesse país é cada vez maior.
Sem dramatizar os acontecimentos de hoje em Bissau, é bom lembrar que a reforma das Forças Armadas da Guiné é uma prioridade absoluta. É preciso que a comunidade internacional dê o seu apoio ao governo do país para que possa ter a coragem suficiente para atacar essa questão. Legitimidade terá. Mas necessita de mais do que isso, ou seja, da determinação dos principais países amigos da Guiné, de modo coordenado.
Mas, quem toma a liderança desse processo, ao nível da comunidade internacional? Quem ousa dar o primeiro passo?
Um dos grandes colunistas do Washington Post - E.J. Dionne Jr. - perguntava, num artigo publicado hoje, se os Estados Unidos serão capazes de manter uma posição de liderança internacional quando a discussão política interna se caracteriza por ser "incorrigivelmente estúpida".
A mesma pergunta, mas à nossa dimensão, poderia ser feita em relação a Portugal. Numa altura em que o debate de ideias e a prática política estão totalmente confusos e sem nível, como pode Portugal aspirar a ser eleito para um lugar no Conselho de Segurança da ONU? Ou, mais modestamente, pensar poder ter um papel de maior relevo na UE? Ou, baixando ainda mais a fasquia das nossas ambições internacionais, como pode Portugal ter um papel de algum peso na CPLP ou na resolução da crise na Guiné-Bissau?
Foram três dias de discussões, com gente vinda de diversas partes do mundo, sobre como abrir pontes onde apenas existe conflito, insegurança e destruição. Um debate esclarecido, esclarecedor e inteligente.
Foi particularmente notória a preocupação com a situação na Guine'-Bissau. Uma situação política que e' má e perigosa. E que causa muitas dúvidas sobre a estabilidade daquele país e o que podera' acontecer nos tempos mais próximos.
Também discutimos o anacronismo que da' pelo nome de Conselho de Segurança das Nações Unidas. O embaixador da Índia em Nova Iorque, um homem culto e muito arguto, disse, sem papas na língua, que mundo e' este, que deixa o direito de veto nas mãos de países como a Grã-Bretanha e que ignora o peso de Estados como o seu?
Portugal, que organizou este encontro de representantes de Estados, ganhou alguns pontos, na cena internacional. A imagem externa de um país e' algo de importante e que precisa de ser cultivado. Assim aconteceu.
O aeroporto de Bruxelas estava às moscas. A maior parte dos voos haviam sido cancelados, uma vez mais. Coisas de gente que não está para arriscar. O avião da tarde, para Lisboa, foi um dos poucos a bater as asas e fazer-se às cinzas. Um dos meus companheiros de viagem havia passado quatro dias num dos hotéis do aeroporto. Ontem, um homem, com sentido de oportunidade, meteu-se à fala com ele, na recepção do hotel. Disse-lhe que por 2000 Euros o conduziria a Lisboa.
Há sempre um negócio possível, nos momentos de grande confusão.
Três patuscos, duas mulheres e uma coisa parecida com um homem, velho, barba de vários dias, e meio morto de não sei quê nem por que razão, viajaram igualmente. Gente com muitas décadas em cima das banhas. No aeroporto, enquanto as mulheres falavam, num daqueles vernáculos que faria corar um cabo velho da velha GNR, sobre pessoas suas conhecidas, gente da emigração, dura como as pedras e tosca como um carvalho dos antigos, primária na sua maneira de viver a vida, mas com sucesso financeiro, o farrapo ia emborcando umas cervejas, à falta de uma boa aguardente de aldeia das brenhas natais. Já a bordo, enfiou mais duas, para chegar à meia dúzia. Fora o gesto de levar a lata ao buraco da boca, pouco mais mexia, naquele corpo que já viu outros ritmos de energia. Quarenta anos de emigração dão umas coroas para um processo de embrutecimento alcoólico, a juntar ao resto.
Fora isso, o embaixador da Guiné, também previsto no trajecto, faltou à chamada. Anda escondido, ao que parece, nos becos mais escuros de Bruxelas, que Bissau não lhe envia meios há tempos que já não têm conta. Os credores devem andar loucos, à procura do senhor embaixador ou de quem responda por ele. Isto de ser o representante de um país que avança para o futuro em marcha atrás tem que se lhe diga.
Encontrei-me hoje com uma delegação militar do Nepal. Falámos dos 19 500 antigos guerrilheiros maoistas que esperam, em campos especiais, que o governo, que resultou do processo de paz, e que integra os líderes políticos maoistas, decida sobre a sua sorte. Serão desmobilizados? Ou serão, na sua grande maioria, integrados nas Forças Armadas? A verdade e' que os ramos militares já contam com mais de 90 000 soldados. Aumentar esse número, neste momento de reconstrução do país, parece ser uma má opção.
Entretanto, o Nepal tem vários batalhões sob a bandeira das Nações Unidas, a participar em missões de paz. No Haiti e no Congo. Na Libéria, igualmente, mas na fase de retirada. Mais. O governo prepara-se para enviar um batalhão, mais uma secção de Polícia Militar, para o Chade e uma companhia para o Darfur.
A participação em missões de paz e' uma maneira inteligente de manter as tropas motivadas, enquanto o processo político vai ganhando raízes, estabilidade e credibilidade. Mas, mais tarde ou mais cedo, vai ser necessário reduzir os efectivos. Aqui, como em muitos outros países, incluindo na Guiné.
Os membros da delegação ofereceram-me, no final, uma faca de combate de alto interesse artístico. Mas, na realidade, arte ou não, e' mais uma arma para matar.
As mortes do General Tagme Na Wai e do Presidente Nino Vieira talvez tenham o condão de fazer reflectir as elites militares e civis da Guiné. Talvez permitam aos dirigentes chegar 'a conclusão que e' altura de por termo a' violência e a uma cultura de conflito permanente. Que e' preciso deixar funcionar as instituições do Estado.
O país de Amílcar Cabral não pode continuar a ser governado a tiro, ao sabor das querelas de personalidades.