Tive hoje a oportunidade de dizer publicamente que na eleição do próximo Secretário-Geral da ONU o critério absoluto vai ser o geopolítico. Como é aliás tradição. Só que desta vez, esse critério ainda será mais estreito. É quase certo que o vencedor será alguém originário da Europa do Leste. E os países sabem que assim deverá ser. Por isso, dos sete candidatos anunciados oficialmente seis provêm de estados dessa região. António Guterres é a excepção. É verdade que vem do grupo europeu, mas como acima digo, este ano a definição geopolítica é mais apertada.
O segundo critério será o do género. Não deve ser visto como um crivo absoluto. Mas pesará.
Em terceiro lugar, dar-se-á vantagem ao candidato que possa fazer a ponte entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Existe uma preocupação evidente em relação a Putine. A tendência actual vai no sentido do restabelecimento do diálogo com Moscovo. O candidato da Europa do Leste que tenha mais condições para fazer essa ligação poderá ter mais hipóteses.
E o quarto critério é o da sorte. O processo é complicado. Podem surgir objeções de última hora. E aí ganha o inesperado.
A mobilização de um certo número de embaixadores portugueses com experiência da diplomacia nova-iorquina, junto das Nações Unidas, dá uma grande ajuda à candidatura de António Guterres. Apoio essa iniciativa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, incluindo o facto de ter colocado o presidente do Instituto Diplomático à frente do grupo de trabalho encarregado da promoção do candidato português. Tivemos, ao longo dos anos, bons embaixadores como representantes permanentes junto da ONU. Sabem bem como funciona a relação de forças e de interesses dos diferentes países e grupos de Estados. É, por isso, fundamental aproveitar esses conhecimentos e pô-los ao serviço de uma candidatura corajosa como a de Guterres mas que, à partida, tem contra ela a questão geopolítica e do género. Estas duas questões vão pesar muito no processo, embora não sejam inteiramente determinantes.
Faço hoje, num texto na Visão, o balanço da reunião de Davos deste ano e a ligação entre o que aí se disse e a eleição do futuro Secretário-Geral da ONU.
O texto tem o título: "De Davos a Nova Iorque".
Quem quiser ter a bondade de me ler, pode abrir a página on-line da Visão ou seguir este link:
Fiquei satisfeito com a tomada de posição de António Guterres, enquanto Alto-Comissário, sobre a crise dos refugiados na Europa.
Esta semana havia criticado, no meu texto para a Visão de ontem, o silêncio de Guterres, que até agora nada havia dito de substância sobre uma matéria tão grave e que tem que ver com o mandato da agência que dirige.
A voz da ONU existe para ser ouvida nestes momentos de grande perturbação. Ficar quieto e mudo é um sinal de fraqueza. Um verdadeiro líder, à frente de uma organização com autoridade moral, que é o caso do ACNUR, tem o dever de lembrar os princípios e as regras internacionais e apelar para que os Estados, por muito poderosos que sejam, as cumpram.
Liderança exige clareza e coragem. Estas duas características não são incompatíveis com a prática da diplomacia. As coisas podem ser ditas com firmeza e de modo claro sem se pisar nenhum calo diplomático.
Na ONU o problema é, muitas vezes, diplomacia e subordinação aos poderes políticos a mais, e coragem de menos. Sempre me bati contra isso. Sobretudo quando os dirigentes das agências e os responsáveis dos programas eram gente boa, mas com uma certa tendência para a timidez política ou com o pezinho a resvalar para o oportunismo.
António Guterres, numa entrevista de hoje, deixou bem claro que a sua opção passa, nesta altura da vida, pela continuação do seu trabalho humanitário, num quadro de intervenção internacional. Não está, por isso, disponível para a política portuguesa. Ou seja, não será candidato à Presidência da República, em Janeiro de 2016.
Devo dizer que compreendo perfeitamente a posição que tomou. E elogio a cautela que teve, de modo a que ninguém possa dizer, com seriedade, que as suas palavras mostraram menos respeito pela função presidencial portuguesa. Antes pelo contrário. Reconheceu a importância da função, mas foi igualmente claro quanto à sua preferência pessoal.
Anda por aí gente a queixar-se de António Guterres, que não se define, que não diz se sim ou sopas, no que respeita às eleições presidenciais de 2016.
Mas a verdade é que Guterres está a jogar claro. Gostaria de ser o próximo Secretário-geral da ONU. Esta função é incomparavelmente mais interessante que a de Presidente da República portuguesa, mesmo escrevendo presidente com um P grande. Enquanto ele pensar que tem hipóteses, ao nível das Nações Unidas, não vai mostrar nenhum outro interesse que possa pôr em causa as suas chances. E, para já, Guterres tem algumas probabilidades a seu favor. É um nome possível.
Não haverá clareza em relação às candidaturas a Secretário-geral nos próximos tempos, excepto no caso de um acontecimento que desagrade profundamente a um dos cinco países permanentes do Conselho de Segurança e que tenha Guterres como protagonista. Ora, ele é prudente e sabe bem quais são as regras e contornos da corrida. Isto significa que Guterres não estará disponível, nem pouco mais ou menos, para ser candidato em Portugal. Mais ainda. É provável que nos próximos meses tenha um cuidado muito especial, uma espécie de afastamento, para que ninguém pense que ainda alimenta, lá no fundo do seu peito, alguma ambição relacionada com o início do ano de 2016 em Portugal.
Convém lembrar que há várias maneiras de servir os interesses do nosso país. Ser candidato, embora nesta fase, silencioso, ao lugar de Secretário-Geral da ONU é uma delas. Por isso, acho que se deve apoiar o candidato português. Que ainda por cima tem sérias hipóteses de conquistar o lugar, acrescento eu. Embora também reconheça que vai haver uma campanha muito forte, ao nível internacional, para que o próximo chefe da organização seja uma mulher.
Depois do almoço, voei para Bangui. Para me encontrar com o António Guterres, que está de visita aos campos de refugiados da República Centro-Africana. Falámos da situação política da região, não da política interna deste país, que essa tem muito pouco que se lhe diga. Só querelas entre personalidades e falta de sentido nacional. Passámos em revista as questões humanitárias.
Jantámos juntos, dois altos quadros da ONU, ambos portugueses. Tivemos percursos muito diferentes. Mas sendo da mesma geração e idade, e do mesmo nível hierárquico, foi, como sempre, um encontro descontraído. Intelectualmente rico. Curiosamente, nenhum de nós tocou na situação política portuguesa. Foi tudo sobre assuntos internacionais, ou as nossas experiências com governos muito difíceis, por esse mundo fora, sobre as vivências humanas e os contactos com a miséria e a desconfiança e muito pé atrás.
Mas, Portugal, nem nos veio à mente.
Mia Farrow terá que me desculpar. Deveríamos ter jantado juntos, mas a minha agenda de hoje obrigou-me a anular o encontro. Mia está no Chade a convite da UNICEF. Vai abrir, amanhã, a campanha de vacinação contra a poliomielite. 19 países da região, na Áfica Central e Ocidental, lançam, em simultâneo, a campanha. A polio continua a fazer vítimas entre as crianças, sobretudo as menores de três anos. Nalguns países, e o Chade é um deles, a capacidade logística e humana para vacinar os infantes foi diminuindo desde 2000.
Foi, aliás, um dia de muita actividade. Começou por um processo contra três dos nossos funcionários internacionais. A nossa secção de investigação conseguiu provar que haviam mantido transacções sexuais pagas com uma prostituta local. Dois deles, jovens de uma ex-colónia portuguesa, haviam obtido o seu primeiro contracto internacional há pouco tempo, após terem servido a organização, na sua terra, como agentes locais. A legislação da ONU não permite o abuso e a exploração sexual. Vão, por isso, ser expulsos da organização.
Depois, tivemos a nossa reunião semanal sobre a situação de segurança na área de operações. Houve cinco ataques à mão armada nos últimos dias. Todos com tiros e violência. Dois deles, bem cheios de rajadas, em Birao. Outro, consistiu numa emboscada contra a polícia nacional que connosco trabalha. Um dos agentes respondeu, gatilho rápido, a bala entrou na testa do assaltante e fez-lhe sair, por um buraco bem maior, na nuca, uma parte do cérebro. Uma fotografia difícil de ver. O comandante-geral, quando me encontrei com ele, sentia-se orgulhoso, face à capacidade de resposta dos seus homens.
Fizémos a rotação dos pilotos de helicóptero russos. São uma boa equipa militar. A participação da Rússia nesta operação de manutenção da paz é importante, significa apoio político. O governo russo considera que a presença do seu contingente mostra que o país quer participar em operações conjuntas com os europeus, desde que aprovadas pelo Conselho de Segurança.
Preparámos a visita de António Guterres à região. Vai estar por estas terras até Terça-feira.
E estive em contacto com o Conselho da Europa, no âmbito das relações Norte-Sul.
E mais e mais. Com tudo isto, o jantar com a estrela perdeu-se no firmamento.