Com a bolsa a descer como desceu hoje, a economia a andar em rodopio, o contágio no ar, as greves à porta, o vazio de liderança , e depois de uma reunião sobre a situação social, fico com a impressão que nós, os portugueses, podemos ser classificados em cinco categorias, um pouco como as castas na Índia.
Primeiro, a categoria dos falidos.
Segundo, a dos que andam a fingir que não estão falidos.
Terceiro grupo, o dos portugueses que andam às aranhas.
A quarta categoria inclui os nossos compatriotas que se refugiaram no estrangeiro.
Finalmente, temos uma categoria à parte, que vive num Portugal que poucos conhecem mas muitos tentam imaginar: a categoria a que pertencem os nossos queridos políticos.
O aeroporto de Bruxelas estava às moscas. A maior parte dos voos haviam sido cancelados, uma vez mais. Coisas de gente que não está para arriscar. O avião da tarde, para Lisboa, foi um dos poucos a bater as asas e fazer-se às cinzas. Um dos meus companheiros de viagem havia passado quatro dias num dos hotéis do aeroporto. Ontem, um homem, com sentido de oportunidade, meteu-se à fala com ele, na recepção do hotel. Disse-lhe que por 2000 Euros o conduziria a Lisboa.
Há sempre um negócio possível, nos momentos de grande confusão.
Três patuscos, duas mulheres e uma coisa parecida com um homem, velho, barba de vários dias, e meio morto de não sei quê nem por que razão, viajaram igualmente. Gente com muitas décadas em cima das banhas. No aeroporto, enquanto as mulheres falavam, num daqueles vernáculos que faria corar um cabo velho da velha GNR, sobre pessoas suas conhecidas, gente da emigração, dura como as pedras e tosca como um carvalho dos antigos, primária na sua maneira de viver a vida, mas com sucesso financeiro, o farrapo ia emborcando umas cervejas, à falta de uma boa aguardente de aldeia das brenhas natais. Já a bordo, enfiou mais duas, para chegar à meia dúzia. Fora o gesto de levar a lata ao buraco da boca, pouco mais mexia, naquele corpo que já viu outros ritmos de energia. Quarenta anos de emigração dão umas coroas para um processo de embrutecimento alcoólico, a juntar ao resto.
Fora isso, o embaixador da Guiné, também previsto no trajecto, faltou à chamada. Anda escondido, ao que parece, nos becos mais escuros de Bruxelas, que Bissau não lhe envia meios há tempos que já não têm conta. Os credores devem andar loucos, à procura do senhor embaixador ou de quem responda por ele. Isto de ser o representante de um país que avança para o futuro em marcha atrás tem que se lhe diga.
Sábado de Páscoa é um dia de transição, na cultura que nos rodeia. De um lado, uma Sexta-feira em que a esperança é crucificada. Do outro, um Domingo que nos desperta uma nova luz, nos abre horizontes, nos faz acreditar na vida.
É preciso saber esperar. Ter coragem. Ultrapassar os momentos difíceis. Acreditar no futuro.
Este foi o meu carro blindado, durante dois anos, em N'Djaména. Um carro que estava muito associado à minha pessoa. Que só saía comigo.
O meu motorista, Ousman Aballi, um Chadiano, foi treinado em Washington. Aprendeu a conduzir em situações de risco. Manteve sempre uma relação muito profissional com a equipa do GOE. E, tendo ouvido algumas conversas, que há quem goste de falar enquanto está a ser conduzido, foi sempre muito discreto, fingindo que não ouvia. Um homem grande. Um senhor de silêncios, que é uma das características de quem tem dimensão.
Jantei com o Eduardo e a Jirina, a meio quilómetro de casa, um casal extraordinário, luso-checo. Como sobremesa, ofereceram-me um livro de poemas do Eduardo, ilustrado pela Jirina, um presente de grande beleza, muito delicado, como todas as obras de amor.
Deu para esquecer o longo discurso que fizera, esta tarde, aos polícias e aos gendarmes do Chade, na parada da Academia de Polícia, um rio de palavras vindas da emoção de ter trabalhado muito estreitamente com estes homens e mulheres muito corajosos. O que não me impediu de lhes pedir que conduzam os veículos da polícia mais devagar. É que são peritos em causar acidentes. Só hoje, entre o nosso campo e a Academia, meia dúzia de quilómetros, conseguiram espatifar dois dos novos todo-o-terreno que lhes havíamos dado. No Leste, ao lado de cada comissariado existe um pequeno cemitério de viaturas acidentadas, que os meus gendarmes, aqui nesta terra, têm o pé pesado e a cabeça leve.
Deu também para pôr de lado as longas discussões diplomáticas do dia, em que se discutiu o futuro da missão de manutenção de paz. Devo acrescentar que a linguagem do governo evoluiu bastante. Talvez seja um sinal positivo. Isto de linguagem de governos é sempre difícil de interpretar. Mas certas palavras, quando deliberadamente escolhidas, são setas, com mensagens que vão direito ao alvo. Há Sol, depois de tantos dias de tempestade de areia. Esta é a verdade.
Hoje foi um dia tão cheio e variado que até acabei por discutir vestuário, apresentações, saias e calças, escolhas, decisões, a melhor maneira de se apresentar quando o momento é de grande significado. É que a roupa, o estilo, a cor e a escolha desta ou daquela peça têm muito simbolismo. E, nós, os velhos diplomatas, vivemos à volta de símbolos. Passamos horas a bater com a cabeça nas paredes, para tentar perceber o valor de um casaco, a leitura a dar à cor de um vestido, a relevância de uma saia, o significado de um fato.
Felizmente que alguns dos nossos deputados, em S. Bento, vão para o Parlamento como se fossem às favas.
Hoje a Gare du Nord foi a de Bruxelas. Fui comprar a minha passagem para o aeroporto Charles de Gaulle. Volto no Domingo a África.
Há muito que não entrava nesta Gare. Foi uma surpresa. Numa das alas laterais, dei com um dormitório de gente sem abrigo. Contei 19 "camas", alinhadas lado a lado, bem encostadas à parede exterior da estação, numa área que embora esteja ao ar livre, está protegida por um tecto de cimento. Algumas, de gente certamente mais abastada, tinham um colchão. A maior parte, eram de cartão e trapos, que a vida de um sem-abrigo não dá para grandes luxos.
Vi todas as idades. Jovens e velhos, lado a lado. Alguns estrangeiros, de aspecto, pelo menos. Ao fim do dia, por volta das seis e pico da tarde, os moradores, ou já estão na cama, ou andam por ali perto, no espaço público da estação, a casa de todos. O tempo estava ameno, o que convidava um ou dois grupos a uma conversa mais desprendida, antes da hora do deitar. De que falam pessoas nestas condições?
Como se trata de um acesso lateral, penso que as autoridades fingem que não vêem. Os utentes habituais sabem, por sua vez, que é uma zona que é preciso evitar. A miséria, mesmo quando nos entra pelos olhos, com a habituação, torna-se invisível. Mas, sempre convém passar ao largo.
Comprei uma sandes. Enquanto a mordia, surgiu, de repente, do meu lado esquerdo, um jovem de pouco mais de vinte anos de idade. Delicadamente, pediu-me que lhe desse um pedaço. Olhei-o de frente e vi a fome com rosto de pessoa. Insistiu. Fiquei engasgado. Perdi o Norte. Afastei-me, ao acaso.
Ontem, no aeroporto, vi-me frente a frente com um amigo de longa data. Foi um encontro fruto do acaso. Fiquei chocado. É um homem da minha geração, mas tem um ar cansado, triste e perdido no fundo de si próprio. De poucas falas, tenta sorrir e sai um esgar que me confunde. Toda a gente diz que teve sucesso, que a vida tem sido boa para com ele. O seu aspecto deixou-me na dúvida. Para mim, estava ali um homem a precisar de alguém que se ocupasse dele, um bicho do mato à procura de mãos suaves que lhe acariciem o pelo e tragam um pouco de tranquilidade.
A idade, e o sucesso, quando crescem juntos, à custa de muito esforço, têm um preço elevado. A certa altura, é tempo de fazer as contas à vida, comparar os ganhos e perdas, tirar o saldo e mudar de agulha.
Voltei para casa a pensar. E desejoso de me ver ao espelho.
Tem que haver uma onda de fundo, de solidariedade nacional, para ajudar a Madeira. Os Portugueses têm que se mobilizar e mostrar que, nos momentos de grandes desafios, somos todos um só povo, uma nação unida pela dor e pela esperança.
Que a Madeira seja o estandarte do que há de melhor no coração do nosso País.
Passei algum tempo, esta tarde, a falar ao telefone com o A. Guterres. A determinada altura disse-lhe que, se ele vier em Março à África Central, como está a planear, será muito provável que eu já não esteja nas paragens. Reformado. Sim, sentado num banco de jardim, no Restelo. Sem estar a olhar para Belém, não hajam equívocos.
Não queria acreditar. Como seria possível deixar um emprego como o meu? Depois percebeu que as minhas décadas com a ONU não foram passadas a resolver a crise da Islândia ou o separatismo no Québec. Nem a partição de Chipre, acrescentei eu. Foram vividos no meio de conflitos mais ferozes, vidas mais ásperas, ambientes de grande tensão. Ou seja, talvez já seja tempo de procurar climas mais amenos e passar o tempo com disputas mais caseiras, do género dos sucateiros da nossa terra.
Entretanto o meu amigo Staffan de Mistura, um homem mais velho do que eu, foi nomeado como representante especial para o Afeganistão. Tenho amigos que não conseguem parar, sair desta vida de homens dos sítios impossíveis. Cada um sabe de si. É verdade que o Afeganistão é um desafio muito tentador. Mas há outros, bem mais perto de casa. Basta pensar nos "afeganistães" que são certos bairros da periferia de Lisboa.
Ouvi bons discursos, durante a minha visita de hoje a Farchana e Hadjer Hadid, a dois passos da fronteira do Chade com o Sudão. Duas zonas de violência, de massas de refugiados e de deslocados, duas zonas em que o controlo das nossas forças começa a ganhar forma. No meio de tanta secura, foi bom escutar um par de discursos elegantes, bem estruturados, de improviso, mas cheios de significado. Palavras ditas bem e com equilíbrio ajudam a resolver os problemas. Afinal, o ser humano é um animal que precisa de comunicar.
E em política, a elegância da palavra justa é uma arte que aprecio.