Entretanto, o meu sobrinho Jorge, que comanda a Pégaso, um barco patrulha da Marinha, interceptou, ao largo de Vila Real de Santo António, uma lancha rápida, com dois poderosos motores de 200 cavalos cada, que vinha, aparentemente, de Marrocos. Com dois tripulantes, transportava, de modo dissimulado, 1,5 toneladas de haxixe.
Estas lanchas, difíceis de apanhar, por causa da força dos seus motores, são, actualmente, um dos meios preferidos dos traficantes de droga. E Portugal está na rota dos traficantes, quer eles venham do Norte de África quer da América do Sul. Neste último caso, os fora-de-bordo vão ao encontro dos navios provenientes da América do Sul, fazem o transbordo no alto mar e regressam, a toda a velocidade, a pontos isolados da nossa costa.
O peso do tráfico de droga na economia clandestina do nosso país está por determinar. Quer o trânsito da mercadoria para outros destinos europeus quer o mercado interno alimentam, em Portugal, uma economia paralela, criminosa, cuja dimensão me parece cada vez mais importante.
O Centro Comercial Dolce Vita, na Pontinha, é um gigante com pés de barro. Tem centenas de lojas, algumas de muita qualidade, mas está localizado numa zona de captação de clientes que é conhecida por ser de gente modesta, sem grandes meios. A falta de poder de compra reflecte-se nas lojas, que estão a maior parte do tempo às moscas.
É, além do mais, difícil de localizar e ainda mais difícil de encontrar o caminho de regresso a certas zonas de Lisboa.
Para quem tem espírito aventureiro, recomenda-se a visita.
A última missão que fiz no Chade levou-me ao deserto de Ouara, nas terras do Sultão de Ouaddai. Encontrei alguns dos habitantes. Sim, aqui vivem pessoas.
É uma zona de rara beleza, onde nos sentimos bem, mas com uma noção mais clara da nossa pequena dimensão. O deserto ensina-nos a o valor da modéstia.
Estive em contacto com o meu amigo F. Havia muito que não falávamos.
É um homem cheio de força, apesar dos seus 50 e muitos, muitos, nascido em Lisboa, junto ao Tejo, educado desde criança no que era então a Rodésia do Sul, combateu na guerra civil, e continuou em Harare até surgir a crise recente. Vive há vários anos, seis ou sete, numa província do centro de Moçambique. Chegou lá sem nada. Começou por plantar milho, negociar em tabaco e alfaias agrícolas, hoje tem vários interesses, e é membro do Conselho Regional de Empresários, um órgão consultivo junto das autoridades da região.
Continua cheio de projectos. E de fé no futuro de Moçambique.
Fez-me pensar nos muitos de nós, portugueses, que fazemos um mundo no mundo. Que acreditamos que é preciso arriscar, empreender, tentar novos horizontes, ser estrangeiro de sucesso nas terras que nos acolhem. Também me fez pensar num país que estava no fundo do buraco e conseguiu dar a volta ao seu destino e ser um exemplo em África.
Neste Domingo de Páscoa convido o leitor a visitar a Igreja Matriz de Birao, capital da região de Vakaga, na República Centro-Africana, bem perto da fronteira com o Sudão.
Com o tempo, a igreja, que como deve ser, está situada na zona central de Birao, perdeu os fiéis. Hoje é um edifício sem vida, numa terra que é cada vez mais islâmica. O Islão conseguiu penetrar ao nível popular, ganhar raízes locais, sobreviver às crises políticas e aos conflitos armados. A região está, hoje mais do que nunca, virada para o Sudão muçulmano. Bangui, a capital da RCA, fica longe, o cristianismo é uma religião de brancos e de gentes das cidades, um mundo distante, estranho, nestas terras bem estranhas.
A isto se chama necessidades básicas. Faz-se o que se pode como se pode.
Tirei esta foto no campo avançado do contingente de capacetes azuis provenientes do Gana, numa zona da nossa área de operações em que os perigos têm sido grandes. É uma região perto da fronteira com o Sudão, a alguns quilómetros da cidade sudanesa de El-Geneina. O campo tem condições de vida muito rudimentares, como a fotografia revela.
Os homens são bravios nestas terras. Bandidos de grande porte e rebeldes de todas as cores circulam pelos caminhos áridos e rochosos. Para que os nossos soldados possam fazer as suas necessidades em paz é preciso muita vigilância.
N'Djaména está sem ligações aéreas com o resto mundo desde Quinta-feira. Completamente isolada. Sucessivas tempestades de areia e de pó fino fecham o horizonte e paralisam a vida quotidiana. As casas, as máquinas, as pessoas, está tudo com uma camada de pó, como se fosse uma nova pele, bem espessa, que se viesse sobrepor ao coiro duro que a natureza nos deu. O pó não pede licença para entrar no íntimo das nossas vidas. Penetra por todos os orifícios, enche-nos a boca e a os miolos, fica tudo emperrado, com o sabor da terra seca a dominar-nos o pensamento.
Só quem tenha experimentado este tipo de fenómenos climáticos pode compreender o que é viver no meio de nuvens de poeira.
A minha viagem de regresso, prevista para amanhã, está agora suspensa no ar pesado que sopra dos desertos. Será que vou poder voar? Hoje à noite, o prognóstico é muito negativo.
O lacrau apareceu na minha casa de banho sem marcação. Foi um frente a frente inesperado. Podia ter dado para o torto. Estava a cinco minutos de me dirigir para o aeroporto, a fim de apanhar o voo dos mochos para Paris.
O escorpião estava imóvel, no terreno descampado que é o espaço entre a banheira e o lavatório. Convenci-me que estava morto. Um erro de apreciação grave. Tentei apanhá-lo, com um pedaço de papel, para lhe proporcionar um banho na sanita. Deu um pulo. De rabo espetado na direcção da mão que ousara tentar o contacto. Se me tivesse picado, o avião teria um lugar vago, o que teria tornado mais confortável a viagem do passageiro que estava destinado a ser o meu vizinho da noite aérea.
Os acidentes com este tipo de aracnídeos são frequentes nas regiões onde me movimento. As picadas causam dores intensas, febre, paralisação da área mordida. Exigem cuidados médicos especializados. São uma boa chatice. Por algum tempo.
Há uns quatro anos, um dos polícias portugueses, destacado na capital isolada do Norte da Serra Leoa, no burgo de Makeni, era o orgulhoso dono de um exemplar de boas dimensões. Não me lembro que nome lhe deu. Mas recordo que saía a correr da esquadra onde era conselheiro, para poder chegar a casa antes do Sol pôr, e apanhar um par de insectos, para alimentar o seu companheiro de solidão. Isto de andar em missões, longe dos amores, dos próximos e do Futebol Clube do Porto – o Chefe é um fã cerrado da Nação Portenha – tem algo que se lhe diga.
Já perto do fim da missão do nosso polícia, o bicho faleceu. Não sei se foi de morte natural, ou se o Chefe deu uma ajudinha – o amor é assim! Assume, por vezes, formas extremas, quando a outra alternativa é a separação. A verdade é que com a sua transição foi possível proceder ao embalsamento do nativo de Makeni.
Hoje, está pendurado na parede da sala de um apartamento do Grande Porto. Um quadro bem feito, digno, que honra a memória de um belo exemplar, que pertenceu a um mundo onde as picadas venenosas, embora façam doer, são feitas sem segundas intenções.
O dia de ontem terminou com uma festa de despedida. Organizada pelo pessoal da MINURCAT, os da Sede, em N´Djaména, com a participação animada de um dos melhores grupos de dança tradicional do Sul do Chade. Uns dançarinos excepcionais, que nos revelaram várias facetas das cerimónias de iniciação, que continuam vivas nestas paragens. Foi também interessante ver alguns dos nossos jovens funcionários nacionais, que normalmente andam de fato e gravata, acompanhar os ritmos, como se a música fizesse parte dos seus génes.
Este é um país culturalmente muito diverso. Enquanto os tambores do Sul batem com a energia da África banto, fazendo vibrar todos os poros dos que sabem viver esssas músicas, e acentuando o erotismo das florestas por explorar, os naturais do Centro e Norte mexem o corpo, lentamente, com a graça oriental das cortes dos sultões.
Entre os pratos tradicionais, havia uma dobrada de cabra, certamente um animal duramente experiente da vida, preparada pela minha Assistente de muitos anos, uma mulher das terras mais amenas da África Austral. Claro que tive que me servir. O resto, não digo.
Foi um fim de tarde quente. Durante o dia a temperatura do ar andou a namorar os 48 graus. Em Março, é assim.
A manhã começara com uma reunião com todos os embaixadores residentes em N'djaména. A reunião mensal, que para mim foi a última, era a oportunidade para dizer "Thank you" e passar à frente. Tudo muito correcto, sem mais. Depois, tive um longo tête-à-tête com o Presidente Idriss Deby. O encontro começou em público, com a minha condecoração com o grau de Oficial da Ordem Nacional do Chade. Um gesto raro. Uma Ordem de elite. Depois, ficámos sós, para falar sobre o Sudão, esta parte do Continente Africano, projectos, água, um tema central para as gentes do Sahel, segurança, e o futuro das Nações Unidas nestas areias. Foi um diálogo com elevação, descontraído, que as ideias são para serem confrontadas, não as pessoas.
Já mais tarde, à hora das orações de Sexta-feira, o Representante Especial do Presidente ofereceu-me um camelo. Lindo. Com calabaças e tudo, aparelhado a rigor. O RE, que responde pelo nome de General Dagache, quatro estrelas e muitas dunas de combate, batalhas muitas, a morder o pó dos ventos áridos, homem com ossos e pele, mas nada mais, que o deserto não é para grandes comidas, é natural do Sahara, não muito longe do fim do mundo que é a região de fronteira com a Líbia. O camelo é a fonte da vida, nesses cantos perdidos, onde a beleza das montanhas roídas por milhões de anos de vento nos faz imaginar catedrais do surrealismo mais ousado. O camelo e água, que brota aqui e ali, nos oásis que se escondem para além das miragens.
O meu camelo está agora em casa, grande e majestuoso, à espera de um caixote que o leve para as terras molhadas da beira-Tejo. É uma peça de madeira que vale a pena que atravesse o deserto.