Ébola: o problema que também é nosso
Ébola: desafio à nossa consciência
Victor Ângelo
Muito se tem falado e escrito sobre a epidemia do Ébola. Na Câmara dos Representantes, em Washington, o assunto passou a fazer parte da histeria política. As audições parlamentares dos últimos dias mostraram que muitos políticos americanos são tão obtusos quanto os nossos. Às análises alarmistas juntaram-se proposições de resposta simplistas, confirmando-se assim a minha suspeição que os parlamentos são usados, tantas vezes, como meras câmaras de ressonância dos fantasmas populares, onde se repetem os lugares-comuns em voga. Com as eleições de 4 de novembro à porta, a epidemia tornou-se uma arma de arremesso, na disputa partidária pelo controlo do Congresso. Bem espremida a retórica, resta, do outro lado do Atlântico e por cá, a mesma obsessão: impedir que “eles” nos contaminem! Só que erigir barreiras e suprimir as ligações aéreas são ideias do passado, do tempo das fortalezas e das carroças postas em círculo, perante os ataques dos Índios. Nada têm que ver com o mundo global e interligado em que na realidade vivemos.
Nestas coisas, o mal corta-se pela raiz. O Ébola tem que ser combatido no terreno, na África Ocidental. E não apenas por se recear que possa ser importado para as nossas bandas. Para começar, trata-se de proteger as populações da Libéria, da Serra Leoa e da Guiné-Conacri. É uma questão de solidariedade internacional, um valor fundamental nas relações entre os povos. Se a epidemia não for contida, milhares de vidas continuarão em risco. O alastramento do vírus entrou já numa fase exponencial. Em seguida, há que ter em conta que o Ébola destruiu uma parte considerável da economia dos três países. Os mercados locais, nas vilas e nas aldeias, fundamentais para a sobrevivência quotidiana dos mais pobres, têm sido fortemente afetados, estando muitos deles suspensos. Sem contar com as quebras significativas da produção agrícola, das atividades comerciais e dos serviços. O afundamento económico está a provocar o desmoronamento das instituições públicas e políticas, que haviam sido laboriosamente reconstruídas nos últimos dez anos, após as guerras civis na Libéria e na Serra Leoa. E há uma outra consequência de que ninguém quer falar: a destruição do tecido social. Os ritos perante a morte têm um peso social importante nestas sociedades. Enterros sem cerimonial ofendem a memória dos mortos, mancham a honra da família, retiram poder e respeito a quem controla o exercício dos rituais. A suspensão das referências sociais e dos valores culturais leva à desorientação das populações, à destruição da coesão comunitária e à rejeição das instruções vindas das autoridades. Lembro aqui o caso recente de um imã muito popular em Bo, a segunda cidade da Serra Leoa. Morreu de Ébola. Ninguém conseguiu convencer os seus discípulos mais chegados que não se deveria proceder à lavagem tradicional do corpo nem à aspersão dos presentes com a água utilizada. Trinta e cinco pessoas terão sido assim contaminadas.
Tudo isto mostra a complexidade da questão ao nível do terreno. Ora, a África Ocidental não tem os meios suficientes, a infraestrutura, nem o pessoal apropriado para controlar a crise. Os EUA, a Grã-Bretanha e Cuba resolveram destacar técnicos e equipamento para o terreno. Mas é preciso mais, incluindo ajuda alimentar. A UE deve estar à cabeça do esforço, assim como a China e a Rússia, enquanto membros permanentes do Conselho de Segurança. É igualmente necessário reconhecer o papel de vanguarda que certas ONGs têm desempenhado, nomeadamente os Médicos Sem Fronteiras. E dar-lhes mais recursos. Temos aqui um repto que interpela a consciência de cada um de nós.
(Publicado no número de hoje da Visão)