Massacres e crise nacional
Há vinte anos que começou o genocídio no Ruanda. E, umas semanas depois, fui enviado para a Tanzânia, como representante da ONU. No rol das minhas atribuições estava a coordenação da recepção das centenas de milhares de refugiados Hútus que iam chegando à Tanzânia e o acompanhamento político da crise, do meu lado da fronteira. As imagens de multidões de refugiados que fugiam a pé do Ruanda, dos massacres e da chegada ao poder dos rebeldes Tutsis ficaram para sempre gravadas na minha memória.
Uma vez levei a minha filha mais nova, que na altura tinha catorze anos acabados de fazer, para a zona, a muitas horas de voo de Dar-es-Salaam. Aconteceu que nesse dia o rio Kagera, que corre do Ruanda para a Tanzânia, estava a trazer um número elevado de corpos de vítimas dos massacres. Gente que havia sido assassinada e lançada às águas do rio. A dada altura, fui dar com a miúda a observar a pesca macabra que era o retirar da corrente esses cadáveres mutilados.
Aprendeu-se muito na altura. Mas quero apenas lembrar uma das lições, que sempre me vem à memória: o medo e ódio pelo outro podem, numa situação de crise nacional profunda, transformar vizinhos pacíficos em criminosos selvagens e cegos, capazes de tudo. Ali, como noutras partes do mundo.