Notas de viagem: o Butão
Convido à leitura do texto que hoje publico na Visão.
A frescura do Butão
Victor Ângelo
A aproximação do aeroporto de Paro, a única porta de entrada para quem viaja de avião para o Butão, dá-nos um primeiro gosto do país: montanhas por toda a parte. É verdade que estamos nos contrafortes dos Himalaias. Paro situa-se a 2400 metros de altitude. Olho pela janela e quase que toco, de um lado e do outro das asas do Airbus, nos imensos paredões de rochedos que fecham o vale que conduz à pista de aterragem. Há poucos pilotos habilitados para voar para esta terra. E serão todos da companhia de aviação local, que mais nenhuma se aventura por estas paragens.
Sempre foi um país de difícil acesso. Mas isso não impediu um outro alentejano, o jesuíta Estêvão Cacela, de o visitar, no ano de 1627, na companhia de João Cabral, um padre beirão. Foram os primeiros europeus por aqui. Cacela escreveu uma longa carta sobre a viagem, dizendo que o lugar era místico, inspirava paz, tranquilidade e felicidade. Quatrocentos anos depois não terá mudado muito. Só que já ninguém se lembra desses missionários. Agora, Portugal traz de imediato à conversa dos butaneses dois outros nomes: Cristiano Ronaldo e Nani. Mencionei Mourinho, mas percebi de imediato que o nome não passa bem, numa cultura em que prima a cortesia e que recusa todo o tipo de agressividade e de autoadmiração.
O respeito pelos outros e pela natureza, a disciplina social e o fervor religioso, à volta de um budismo fortemente marcado pela mitologia hinduísta, são outras das características que definem a cultura local. Mas o traço mais evidente tem que ver com a proteção da identidade nacional, que se manifesta na maneira de vestir em público e na deferência em relação ao rei. Compreende-se. Apertado entre a China, a norte, e a Índia, dos três lados restantes, com um território que é cerca de metade do nosso e uma população que não ultrapassa as 800 mil almas, o Butão precisa, para se manter independente, de ser diferente e de possuir um forte sentimento de orgulho nacional. Consegue fazê-lo. Comete mesmo a proeza de não ter relações diplomáticas com a China, apesar da longa fronteira comum. É verdade que isso se faz à custa de um alinhamento diplomático estreito com a Índia. Mas, em política externa, tem que haver realismo, e na escolha entre os dois vizinhos, há um que não ocupou o Tibete, uma região que tem uma cultura gémea da butanesa.
Percorrer as estradas e os trilhos do Butão é descobrir um modo de vida que, ao combinar o tradicional e o moderno, se desenrola em grande harmonia com a natureza. A Constituição, revista em 2008 para democratizar o regime e limitar os poderes do rei, que passou a ser obrigado a abdicar ao atingir a idade de 65 anos, protege a natureza – 60% do território nacional é intocável e tem que ser preservado tal como está – e o bem-estar dos cidadãos. Este é o país que definiu o bem-estar como sendo mais importante que o produto interno bruto. Mas isso não impede um processo de desenvolvimento acelerado, que me surpreendeu de modo positivo, e que põe o Butão à frente de muitos outros países comparáveis. Assenta na educação obrigatória, transmitida em língua nacional e em inglês, na produção de energia hídrica, exportada para o imenso mercado que é a Índia, na autossuficiência alimentar e no nicho do turismo de qualidade. E numa prática política responsável, que promove a alternância e que reconhece o mérito da oposição e das opções governativas diferentes.
Nestes tempos em que se procuram ideias alternativas, vale a pena visitar o país, voltaria a dizer hoje o Padre Cacela. E não o diria apenas por causa do ar puro das montanhas ou pelo facto da venda de tabaco ter sido banida no Butão.