Funcionam ou não como um íman, atraindo sucessivas vagas de imigrantes? A sua presença nas águas do Mediterrâneo Central, bem perto das costas líbias, constitui, ou não, um estímulo às travessias de alto risco? E ainda, uma facilitação do negócio dos traficantes de pessoas, que podem agora utilizar embarcações absolutamente inseguras, sem o equipamento mínimo, sem combustível que preste? Estas são algumas das questões levantadas pelo governo italiano e por outros, incluindo as agências europeias que tratam destas coisas, quando olham para as operações de salvamento que nove organizações não-governamentais têm em curso nas águas que separam a Líbia do sul da Itália.
A essas interrogações juntam-se outras, relativas à soberania do espaço europeu. Os fluxos migratórios incontrolados põem em causa um princípio fundamental que é o da defesa e proteção das fronteiras. Quem parte dessa visão dos factos, que dá a primazia à integridade do território político, olha para a atuação das ONGs de modo muito crítico, a um passo apenas de as acusar de ajuda organizada à imigração ilegal. Assim, as ONGs estariam a pôr em causa a própria segurança da Europa e, muito especialmente, a da Itália.
É evidente que as ONGs não aceitam essa maneira de encarar a missão que as anima. Refutam as acusações e opõem-se a todo o tipo de medidas que possa restringir a sua ação humanitária. Não concordam, por isso, com o novo código de conduta que a Itália, em coordenação com a UE, preparou. Segundo esse projeto de regulamentação, as ONGs teriam que permitir a presença de agentes fronteiriços, italianos ou europeus, a bordo dos navios de resgate de pessoas. Deixariam de poder lançar foguetes de posicionamento. Seriam obrigadas a trazer para terra as pessoas salvas, sem transbordo para outros navios. E ficariam proibidas de entrar nas águas líbias ou de ter contactos com indivíduos ou organizações desse país.
O código de conduta não foi discutido com as ONGs. Deveria tê-lo sido. Para isso servem as autoridades políticas, quer dos Estados quer das instituições europeias. A ligação com as ONGs não pode ser feita apenas ao nível operacional e tático, no alto mar ou no momento dos desembarques. Deve incluir as dimensões mais políticas, incluindo as que dizem respeito ao equilíbrio entre as funções de soberania e as preocupações humanitárias. Claro que devem existir regras, nestas matérias tão delicadas. Mas, as ONGs têm que ser ouvidas.
De qualquer modo, o debate sobre a “teoria do íman” é uma polémica estéril. O que atrai centenas de milhares de jovens africanos e os faz correr grandes perigos na travessia do Deserto do Saará e do Mar Mediterrâneo tem que ver com três problemáticas. Primeiro, a ilusão que a Europa é um espaço de abundância e de gente feliz. Por muito que se diga o contrário, nas ruas de Kano, na Nigéria, ou em Banjul, na Gâmbia, os jovens não acreditam. Sonham, isso sim, com o mito do El Dorado europeu. Segundo, o subdesenvolvimento, sobretudo no que respeita à falta de oportunidades de vida, ao crescimento demográfico acelerado e ao caos crónico que caracteriza o dia-a-dia da África Ocidental. Terceiro, a indecisão da resposta europeia a um fenómeno que está fora de controlo. O exemplo mais recente do desnorte reinante é o da proibição, aprovada em Bruxelas, no Conselho dos Negócios Estrangeiros, da exportação de barcos pneumáticos para a Líbia. Isto resolve o quê?
As soluções passam, concomitantemente, por três grandes áreas de atuação. Para começar, é preciso melhorar a informação sobre as tragédias humanas e a aflição que esperam a maioria dos imigrantes, uma vez chegados à Europa. Trata-se de destruir o mito do El Dorado. Depois, os Estados europeus têm que se juntar e colaborar de modo efetivo na triagem expedita e rigorosa de quem tem condições para ser aceite e de quem deve ser deportado. E, pela positiva, a Europa precisa de investir muito mais na implementação de programas de reforço do Estado e de combate à corrupção nos países de origem e de passagem dos candidatos à imigração. Ou seja, no fundo, no fundo, no que respeita a este último ponto, parece-me que chegou a altura de voltar a refletir sobre as políticas de ajuda ao desenvolvimento. Mas agora, de modo mais realista, mais estratégico e de igual para igual, sem os paternalismos do passado.
Transcrevo de seguida o texto que hoje publiquei na revista Visão.
2015: descobrir o futuro
Victor Ângelo
A intenção, nos círculos por onde ando, é que 2015 possa ser um ano de reflexão sobre o futuro da humanidade. Assim, procuraremos manter em foco três das grandes questões que continuam por resolver: a pobreza de milhões, a degradação contínua do meio ambiente e a indiferença perante o nosso destino comum. Quinze anos após o lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e depois de um balanço ambivalente, é altura de olhar em frente. E de ter em conta que estamos nisto juntos, para o melhor e para o pior. A interdependência entre os povos – os problemas de uns acabam por ter um impacto sobre os outros – é agora um traço marcante nas relações internacionais.
Foi isso o que o Secretário-geral da ONU nos veio lembrar, há dias, ao divulgar a sua proposta de agenda para o desenvolvimento global. O título que deu à proposta é elucidativo: “ O Caminho para a Dignidade até 2030 – acabar com a pobreza, transformar as vidas e proteger o planeta”. É um projeto complexo, destinado a servir de base, na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, em Setembro, a um acordo sobre os novos objetivos de desenvolvimento sustentável. Muitos irão opinar que a resposta sugerida é demasiado vasta. Não serei eu quem irá criticar Ban Ki-moon. Nestas coisas, tem que haver um mínimo de elegância e de bom senso. Se aceitarmos que um antigo Chefe de Estado não deve censurar abertamente um seu sucessor, então, por maioria de razão, um antigo alto funcionário, que trabalhou diretamente com o Secretário-geral, também não pode vir a terreiro e deitar abaixo um conjunto de sugestões que se destinam a alimentar o debate público e a definir um plano de ação.
Farei, no entanto, um par de observações. Estamos na antecâmara de um período de instabilidade geoestratégica. A tendência atual é para a aceleração das incertezas e para a globalização dos riscos. Um plano a quinze anos é demasiado longo, quando tudo muda de modo acelerado. Terá, por isso, que ser visto como um quadro de referência genérico, a partir do qual deverão ser definidas metas intermédias, que possam ser monitorizadas. Por outro lado, o plano está inquinado pela velha perspetiva que nos faz olhar para as pessoas como beneficiários das políticas, como objetos e não como atores da mudança. Os responsáveis não deverão ser apenas os outros, os governos e as instituições. Temos de ser todos e cada um de nós também.
Trata-se, entretanto e no essencial, de uma proposta progressista. Parte de uma premissa que considero fundamental: o respeito pela dignidade das pessoas, sobretudo dos mais marginalizados. Foi o que aprendi ao longo da vida e de décadas de trabalho em países de grande pobreza e de violência institucionalizada. O reconhecimento do valor de cada pessoa deve ser o ponto de partida, em qualquer sociedade. Na desolação do Sahel ou nos bairros de lixo de Carachi, cada um espera, acima de tudo, que o deixem em paz e lhe garantam a segurança, que respeitem o seu direito à vida e à liberdade, que não seja vítima de nenhum tipo de discriminação. Curiosamente, estamos a reconhecer agora o que havia inspirado a ONU há setenta anos. Ao redigirem a Carta das Nações Unidas – um documento que deveria fazer parte do currículo escolar – os fundadores quiseram, com clareza, “reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres”. É essa mesma problemática que deve continuar no centro das preocupações, em 2015 e depois.
Num ambiente dominado por questões políticas marginais, a realização em Lisboa de uma conferência internacional sobre o desenvolvimento, nos últimos dois dias, merece destaque. Saiu da pequenez e das querelas de compadres que têm estado a definir a actualidade nacional nas últimas semanas.
O encontro, que se irá repetir anualmente, foi um sucesso. Voltou a colocar as questões do desenvolvimento no plano prioritário, sobretudo numa altura em que o debate sobre as responsabilidades da comunidade internacional no período pós-ODM – Objectivos de Desenvolvimento do Milénio –, ou seja, para os anos 2016-2030, está a entrar na fase final, de acertos quanto às áreas de intervenção e de apuramento dos resultados que deverão estar na linha de mira da cooperação internacional.
O último dia da conferência coincidiu com o lançamento, pelo Secretário-geral da ONU, do relatório intitulado “ O Caminho para a Dignidade 2030: Acabar com a Pobreza, Transformar as Vidas e Proteger o Planeta”. Este é o documento de base para a elaboração da próxima agenda do desenvolvimento internacional. Está disponível em inglês, na página da ONU, e deve ser lido por todos os que se preocupam com estas questões.
A conferência de Lisboa deveria agora procurar ligar o seguimento das discussões que acabam de ter lugar na Gulbenkian com o debate público que agora começa, à volta do relatório de Ban Ki-moon. Deste modo, a iniciativa ganharia uma projecção internacional acrescida e colocaria Lisboa no mapa da reflexão global sobre as grandes questões das próximas décadas.
Isso seria certamente mais útil do que andar a discutir as bagatelas que nos têm ocupado os tempos recentes.
A edição “verde” é como um olhar sobre o futuro. Por isso, escrevo hoje sobre África. Começo por lembrar que sete das dez economias com maior taxa de crescimento económico são africanas. Após duas décadas, as de 80 e 90, de declínio acentuado do rendimento médio por habitante, África, no seu todo, tem conhecido um desenvolvimento sustentado na última dezena de anos. Este é o lado positivo da medalha. Do outro lado, a pobreza continua a ser a caraterística que marca o continente: perto de 70% dos africanos vivem abaixo da linha da pobreza. Esta situação é agravada por uma demografia acelerada. Quando se compara as regiões do globo, a taxa africana de crescimento populacional é de longe a mais elevada. África atingirá os 2 mil milhões de habitantes em 2050, o dobro do valor de agora. Convém ter presente que este crescimento tem uma dinâmica própria, imparável a curto prazo. Os 2 mil milhões serão uma realidade. Tornam, assim, o desenvolvimento de África uma exigência premente e absoluta, um dos maiores desafios para as próximas décadas. Não existe, porém, a compreensão que seria de esperar face à dimensão do problema. Ora, a questão diz respeito a todos, embora de maneira mais aguda aos africanos e aos povos que têm uma relação de proximidade com África. A Europa está manifestamente na linha da frente.
A verdade é que nós, os europeus, não parecemos estar conscientes do tsunami que se aproxima. Aceitamos que vistas estreitas definam o nosso horizonte. Vemos conflitos étnicos, naufrágios no Mediterrâneo, Sida e Ébola, Boko Haram e outros extremismos. Contamos uma dezena de Estados em crise. Ignoramos, no entanto, que existe uma quarentena de países que funcionam mas que são diariamente fragilizados pela explosão populacional e pelo caos das migrações internas para as megacidades.
A boa governação e a transformação económica são as respostas que a pressão demográfica exige. Deixemos de parte, por hoje, as questões da governação. Os decisores em matéria de ajuda, em Bruxelas, Londres, Washington ou Nova Iorque têm aliás, nos últimos vinte e cinco anos, prestado uma atenção desmesurada às dimensões da governação. A transformação económica, que passa por dar a prioridade ao sector energético e à agricultura – o tandem do desenvolvimento económico –, tem sido marginalizada. Mas falemos apenas de agricultura. Em África, o sector agrícola precisa de uma revolução. É preciso ir além das culturas de subsistência, que mantêm no limiar da fome cerca de 2/3 das famílias – estamos perante o único continente em que a produção de alimentos por pessoa diminuiu de modo significativo nos últimos cinquenta anos. E aproveitar os recursos: apenas 20% das terras aráveis são atualmente utilizadas.
Os programas de desenvolvimento e os orçamentos dos Estados africanos têm que voltar a colocar o enfoque na agricultura, investir na formação e nos meios de produção. O agricultor africano utiliza em média 10 quilogramas de fertilizantes por hectare e por ano. Na Índia, o valor ronda os 176 kg. Aos adubos há que juntar sementes de qualidade, irrigação, meios de controlo das pestes e de preservação das colheitas – conheci terras onde cerca de 40% do que era colhido acabava por se perder, por falta de condições de armazenagem, de frio e de acesso aos mercados. Tudo isto é possível. Basta haver vontade política, dar à agricultura a prioridade que nunca deveria ter perdido e pensar, acima de tudo, nas pessoas, na sua segurança alimentar e também na segurança, pura e simples, de todos nós.