O Superintendente da Polícia de Segurança Pública (PSP) de Portugal, Luís Carrilho, tem feito uma carreira internacional com as Nações Unidas de grande exemplaridade. É uma estrela no firmamento da Polícia da ONU (UNPOL), um quadro de topo. Depois de ter comandado a UNPOL em Timor no Haiti, acaba de ser nomeado Comissário – quer dizer, comandante-geral – da força de 200 polícias e gendarmes que irão ser destacados para a República Centro-africana, no âmbito da nova missão de paz nesse país.
É uma grande distinção pessoal e, ao mesmo tempo, uma honra para a nossa PSP. Desejo-lhe o maior sucesso, num país que conheço bem e que sei que não é nada fácil.
Neste Domingo de Páscoa convido o leitor a visitar a Igreja Matriz de Birao, capital da região de Vakaga, na República Centro-Africana, bem perto da fronteira com o Sudão.
Com o tempo, a igreja, que como deve ser, está situada na zona central de Birao, perdeu os fiéis. Hoje é um edifício sem vida, numa terra que é cada vez mais islâmica. O Islão conseguiu penetrar ao nível popular, ganhar raízes locais, sobreviver às crises políticas e aos conflitos armados. A região está, hoje mais do que nunca, virada para o Sudão muçulmano. Bangui, a capital da RCA, fica longe, o cristianismo é uma religião de brancos e de gentes das cidades, um mundo distante, estranho, nestas terras bem estranhas.
Regressei esta noite, já tarde, de Bangui. O atraso foi devido a uma reunião, ao fim do dia, com o Presidente da República, François Bozizé. Um encontro depois de um dia preenchido, que havia começado com uma sessão de trabalho, logo pela manhã, com o Primeiro-ministro Toadera. O PM é um homem simpático, professor universitário de matemática, jovem e sempre disponível. Disse-me que havia aprendido muito comigo, nos dois anos que passámos a trabalhar num mesmo projecto político. Fiquei a pensar que se um PM me diz que apreendeu comigo é porque eu sou de facto um velho caminheiro. Um guru de barbas brancas, meio careca e pernas cansadas. Tempo de fugir para a caverna dos reformados. Fez-me bem, no entanto.
O encontrão com o Presidente, com quem sempre mantive boas relações, foi um pouco frustrante. Tentou reduzir a importância de problemas fundamentalmente políticos, tratando-os como meras questões de banditismo. É a técnica da redução, da minimização, um velho truque político. Queixou-se de uma ONU que não o ouve, apesar de repetir as mesmas mensagens há mais de doze anos. É capaz de ser verdade, disse-lhe, para depois lhe explicar como se organiza uma relação produtiva com o Conselho de Segurança. Começa por se ter um embaixador com capaciade, em Nova Iorque...Falou das Forças Armadas, como se o problema fosse simplesmente militar. E disse-me obrigado, a mim que tanto fiz pelo seu país, como quem diz tanto faz. Fiquei com uma cara de pau mal seco.
Foi um final cinzento. É verdade que, ontem e hoje, o tempo havia estado quente e húmido, um ambiente infernal em Bangui. Acabou em trovoada, às quatro da tarde, hoje, quando estava prestes a entrar no Gabinete do Presidente. Bangui fica feia, depois de uma chuvada intensa. Fica com poças de água por todo o sítio, lama e sujidade que as enxurradas tornam mais visível. Mas, torna-se mais fresca. Entre o cinzento e a frescura, o leitor que escolha.
Numa nota final, as colinas da cidade, que há vinte e cinco anos constituíam uma floresta equatorial, impenetravelmente bela, virgem como as que esperam os mártires bombistas nos céus das mentiras fundamentalistas, estão hoje cheias de clareiras, desbastadas e prontas a serem levadas por umas chuvas mais intensas. É a pressão demográfica e a pobreza que se combinam, nestas colinas agora violadas.
55 graus na sala de reuniões, 100 por cento de humidade, um ambiente de Inferno, numa reunião amigável com as ONGs que operam na República Centro-Africana, gente jovem e cheia de boa vontade, tudo no edifício do PNUD, onde trabalhei há 25 anos, os aparelhos de ar acondicionado tão a cair de velhos que alguém disse que devem ser os mesmos que eu instalei nessa mesma sala, quando aí cheguei em 1985, preocupações sobre um processo eleitoral que só é credível para quem queira acreditar nele, uma equipa de desmobilização de combatentes muito profissional mas dirigida por incompetentes, um país de diamantes em que os pigmeus são uma atracção anacrónica, enfim, um dia bem preenchido, de fato e gravata.
A voltar ao aeroporto, ao fim do dia, para voar para outras paragens, havia também o voo da TAAG, uma ligação de Luanda, por Brazzaville e que de Bangui vai a Douala, uma outra maneira de sair destas terras isoladas. Ao lado do jacto das Nações Unidas, um bom avião de classe acima da média, havia dois outros jactos privados, muito maiores, mais luxuosos, um francês e outro do Congo, o pequeno Congo, que fariam nesta cidade, nesta Bangui de palhotas e de dancings populares, de gente pobre e de recursos naturais vastos, urânio, entre eles, sem contar o ouro e os diamantes. Estariam os senhores dos jactos numa das palhotas onde se serve vinho de palma? Ou nos salões sossegados do poder, onde se fala do minério do urânio com a delicadeza que a gente fina possui?
Passam-se coisas interessantes nestes apeadeiros de fim de linha.
Vivemos em Bangui entre Setembro de 1985 e Setembro de 1989. Depois de quase cinco anos em Maputo, Bangui parecia um paraíso de tranquilidade, mas muito perdido no coração de África. O destino seguinte foi a Gâmbia.
Hoje Bangui, onde estou a escrever este texto, está mais bonita. La Coquette, como gosta de ser conhecida. Tem mais ruas, mais alcatrão, mais gente. Até tem dois ou três monumentos. Mas menos actividade económica, menos Europeus. O clube de ténis, que nos anos oitenta era frequentado por muitos sócios, até às 22:00 horas, fecha agora às seis da tarde. O Rock Club, onde as minhas filhas passavam o fim do dia, nas actividades extra-escolares, mesmo junto ao rio Ubangui, em frente do Congo Democrático, está meio parado e a cair de sujo.
O aeroporto tem um voo por semana para a Europa. Chega-se aqui às Quintas, cedo, passa-se o dia em reuniões e volta-se a Paris no mesmo avião que nos trouxe, levanta-se voo depois do jantar.
As árvores de grande porte estão agora mais velhas. A cidade é conhecida pelas inúmeras árvores de mangas. Na estação das mangas, os jovens andam de um lado para o outro com grandes varas, vários metros, e vão derrubando os frutos mais apetitosos.
A dúvida está presente no meu quotidiano. É fundamental dar espaço à dúvida, para que a compreensão do que nos rodeia se torne mais clara.
Neste tipo de vida, o que parece nem sempre é. Há, tantas vezes, um grau de incerteza sobre a realidade de um facto. Com a experiência, aprendemos a ir para além das aparências. Das interpretações simples. Que pode estar por detrás de um incidente, de uma declaração, de uma acção militar, de uma abertura política? Será que nos querem fazer crer em determinada coisa, tomar uma determinada direcção, quando a realidade é outra?
Os serviços secretos e os meios de comunicação social são muito dados à fabricação de factos. E de boatos, de medos, de papões.
Estou, neste momento, a lidar com alguns deles.
Não convém, no entanto, cair na teoria da conspiração, que vê um enredo em toda a parte, como acontece muitas vezes em regimes totalitários. E nas mentes simples.
Hoje cerca das 10:30, os militares das FACA (Forças Armadas Centro-Africanas), acampados em Sam Oundja, entraram em parafuso e começaram a disparar uns contra os outros. No final do tiroteio, havia quatro mortos para enterrar e dois feridos graves. Um dos militares mortos foi o comandante do contingente, um jovem tenente. Tinha passado uma parte do dia de Terça-feira a negociar com ele. Achei-o um homem inteligente e carismático. Tinha vindo para Sam Ouandja, com os seus homens, para uma expedição de três meses, e já ia em nove...Estava desejoso de voltar para Bangui, o que iria acontecer dentro de um ou dois dias...
O meu conselheiro político principal, que também o conhecia, disse-me que, nestas terras, o carisma não protege das balas.
É verdade. Mas ser prudente, ter dúvidas, ver bem todos os ângulos, ajuda muito.
Se se abre bem os olhos, fica-se mais sábio, cada dia que passa.
Este Sábado começou com um ataque rebelde contra o campo militar das FACA (Forças Armadas da República Centro-Africana) na pequena cidade de Birao. Birao está situada no triângulo de todas as rebeliões, onde o Sudão, o Chade e a RCA partilham fronteiras comuns. É um triângulo com pouca lei e muito perigo.
Eram 05:37 quando os primeiros tiros foram disparados. Os últimos deixaram de se ouvir cerca das 08:00 horas. Os soldados das Nações Unidas, Togoleses, tiveram que intervir, para proteger as ONGs e as populações civis.
Neste momento, a situação está calma. Os capacetes azuis controlam a cidade e o aeroporto, cerca de dez quilómetros a Sul. Temos perto de trezentas pessoas acampadas junto ao nosso arame farpado, mais um certo número de trabalhadores humanitários no interior do quartel da ONU. Só o Comité Internacional da Cruz Vermelha, por razões de princípio, está fora da nossa protecção.
Entretanto despachei o General Comandante das nossas Forças de Abéché para Birao, bem como um avião cargueiro com rações, água e material de combate.
Tem sido, desde muito cedo, um tocar sem fim dos telefones, com Abéché, Birao, Bangui e N´Djaména do outro lado da linha.
Hoje à tarde estarei em Bangui. A escala já estava prevista. Faz parte da minha viagem para Entebbe. Verei o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Quando chegar a Entebbe, esta noite, espero poder descansar um pouco, que bem preciso, nas margens do Lago Vitória. Uma zona bonita, com bom tempo e uma temperatura amena. A última vez que visitei foi em 1997. Vitória é um nome de guerreira, mas, esta noite, o que precisarei, será de paz.
Este quadro de Malangatana, da minha colecção pessoal, é para recordar que passei o dia a percorrer as ruas de Bangui, os gabinetes do poder, as contradições dos mercados, à procura de respostas para a recente fuga de 17 000 cidadãos da R. Centro-africana para o lado chadiano da fronteira. De que fugiam essas pessoas? Por que razão 86% desses refugiados são mulheres e crianças? Onde estão os homens?