Todos sabiam que Liz Truss não tinha as qualidades necessárias para desempenhar as funções de primeiro-ministro. Mas os membros do Partido Conservador votaram nela para não votar num candidato de pele escura, de origem indiana, ou seja, num britânico tolerado, mas não inteiramente aceite. Assim pensa um conservador britânico tradicional. Perante isto, o caos actual em que se encontra o governo de Sua Majestade é partilhado: uma parte resulta da incompetência de Truss, a outra da xenofobia discreta dos mais conservadores entre os conservadores. É uma crise mais profunda, por isso, do que possa parecer. E lembra-nos que esse tipo de xenofobia e sentido de superioridade foi o que levou uma maioria dos britânicos a votar pelo Brexit. Por isso, pensar que a crise em curso poderá abrir a possibilidade de um recuo em relação ao Brexit é um engano. A ideia, a convicção que eles são melhores do que os outros europeus continua entranhada na cabeça de muitos. Incluindo na cabeça de muitos cidadãos descendentes da imigração asiática, da Índia e do Paquistão.
O que continua a acontecer à volta de Boris Johnson é uma vergonha, excepto que ele não sabe o que essa palavra significa. Mais de 40 membros do governo e da política conservadora abandonaram o barco que Boris pilota – ou melhor, que já não pilota, que se está a fundar. E ele continue agarrado ao poder. Sem se demitir, terá provavelmente que sair quando for votada uma moção de censura. O regime é profundamente parlamentar e só o parlamento o poderá fazer sair, seja por perder a confiança dos deputados do seu partido, seja por virtude de uma derrota, aquando de uma moção de censura. 69% dos eleitores pensam que Boris Johnson deveria pedir a demissão.
De qualquer modo, já garantiu o seu lugar na história britânica: por mentir, na altura do referendo sobre o Brexit; e por continuar a mentir e fazer trapalhadas desde que está no governo.
Com o Brexit, confirmou-se que a União Europeia nunca será uma verdadeira potência, pois é muito menos do que a soma das partes e até perde algumas delas?
A noção de potência evoluiu neste século. E ainda bem. Já não é simplesmente o resultado de uma projeção de força armada. A velha noção de poder militar perdeu muitas penas no Vietname e mais recentemente no Iraque e no Afeganistão e já não voa muito alto. Quem fala numa Europa da defesa deveria ter presente esses exemplos. Isso não quer dizer que as forças armadas não sejam importantes. Mas, nas relações internacionais, o que conta e é duradouro é o poder de influência. A capacidade e a habilidade de levar outros estados a adoptar certas medidas, seguir determinados valores, olhar para nós como uma fonte de mediação de conflitos e de estabilidade, como um modelo de democracia. É nisso que a UE deverá apostar. No poder do convencimento, com base nos princípios da liberdade e dos direitos das pessoas.
Penso também que com o tempo o Brexit pode ser entendido como uma vantagem. A saída de um país que na realidade nunca quis fazer parte do conjunto deve permitir o reforço da unidade e aguçar a identidade europeia. A identidade histórico-cultural é uma alavanca de poder. A Europa precisa de investir nessa via.
Dizem-nos que há acordo entre a União Europeia e o Reino Unido. Mas não nos explicam quais são os principais pontos desse acordo. É verdade que se trata de um documento de 2 mil páginas, mais coisa menos coisa. Vai ser preciso ter muita paciência para perceber as principais implicações do acordo de que se fala hoje.
Entretanto, o Primeiro-Ministro britânico apareceu na comunicação social a proclamar que se tratava de uma grande vitória para o seu país. Está bem. Assim se faz política demagógica. Cede-se nos minutos finais do jogo, na véspera da noite de Natal. De seguida, grita-se vitória. E abre-se o espumante. Para ele, será certamente uma vitória política, com todo o efeito mágico que saberá colocar na apresentação da coisa. Mas gente muita responsável no seu país não parece comungar da mesma opinião.
Com este tipo de políticos, a melhor solução é manter uma boa distância. E não entrar em familiaridades. Ignorá-los tanto quanto possível é remédio santo. E convém dar-lhes a entender que esse é o tratamento que lhes reservamos. O que não impede de lhes desejar um bom Natal.
Neste momento, com o período de transição pós-Brexit a terminar, a pressão para que as partes cheguem a um acordo é enorme. Seria um erro dizer que o Reino Unido está mais interessado na conclusão desse acordo de livre-comércio do que a União Europeia. É verdade que Londres já percebeu que a ligação ao espaço económico europeu é fundamental. E que está a tentar encontrar um ponto de equilíbrio entre a retórica sobre o Brexit – as mentiras que Boris Johnson propalou antes e depois do referendo – e a maneira como irá vender à sua população as concessões que terá de fazer. Boris Johnson sabe que a alternativa é clara: sem acordo será tudo muito mais complicado. Mas os europeus também querem chegar a um ponto de encontro. Não estão, no entanto, dispostos a fazer grandes concessões. É uma questão de princípio – ou se está dentro ou fora.
É difícil fazer um prognóstico, se sim ou não, se haverá ou não um acordo. De qualquer modo, o que vier a acontecer – o sim ou o não – vai ser objecto de muita interpretação política.
O nosso amigo Boris Johnson parece estar em competição com o nosso muito amado Vladimir Putin no que respeita ao lançamento do programa de vacinação contra a covid-19. Cada um quer ser o primeiro a começar as picadelas.
Um dos ministros de Boris disse no parlamento de Westminster que o Reino Unido está numa posição mais avançada do que a União Europeia graças ao Brexit. Nada mau como aproveitamento político, diria quem sabe dessas coisas.
Penso, no entanto, que Boris não deve ter gostado do comentário feito pelo Dr. Anthony Fauci, a sumidade americana nesta matéria, que disse que os britânicos encurtaram a maratona para poder chegar primeiro. Ou seja, aprovaram a vacina sem seguir os protocolos científicos habituais. Este comentário deixaria Boris envergonhado se ele soubesse o que é vergonha.
Haverá ou não acordo um comercial de longo alcance entre a União Europeia e o Reino Unido, que regule as relações entre as partes a partir de 1 de janeiro de 2021?
Neste momento, a um mês do término do acordo Brexit de transição, é impossível responder a esta questão. Mas tendo em conta o que está em jogo, em termos de interesses económicos e de relações de boa vizinhança, a minha aposta é que se chegará, em cima da meta, a um acordo.
Veremos se tenho razão. A ausência de preparativos de emergência, por parte de Bruxelas, de acções que permitissem uma resposta a uma ruptura das relações, convencem-me que estou a fazer uma boa aposta. Haverá acordo.
Há neste momento uma conjugação de crises que não é de bom augúrio.
Na Europa, temos o plano de resiliência que está em risco. A posição da Polónia, que não quer ver as questões da democracia e do estado de direito incluídas no plano como condicionalidades para a atribuição de fundos, poderá atrasar a aprovação do pacote de emergência e mesmo do orçamento europeu. Para os dirigentes polacos, gente extremamente conservadora, a manutenção do seu controlo das alavancas do poder é mais importante do que o dinheiro que possa vir de Bruxelas.
Temos ainda o impasse com os britânicos. O período de transição está a terminar e não parece ser possível chegar a um acordo que trate das relações futuras entre a União Europeia e o Reino Unido. A questão da pesca é um obstáculo maior. Nessa matéria, o presidente francês não pode dar a impressão que não defende os interesses dos pescadores do seu país. Não sei como vão descalçar esta bota. Sei, no entanto, que a ausência de acordo entre as partes provocará uma quebra significativa nas relações económicas. Isto numa altura em que as economias já estão debaixo de um grande stress.
Temos o covid fora de controlo. Para além das implicações em termos de saúde pública, haverá que fazer frente a uma crise económica e social enorme. As medidas de mitigação que os governos europeus estão a adoptar têm custos financeiros enormes. O endividamento dos estados provocará, mais cedo ou mais tarde, um aumento inédito dos impostos bem como medidas extremas de contenção de outras despesas.
E para culminar, temos a crise política que se está a preparar nos Estados Unidos. Tudo poderá acontecer, uma vez conhecidos os resultados eleitorais. Incluindo uma enorme confrontação entre os dois lados. Alguém me dizia hoje que se sente mais insegura agora, em Nova Iorque, do que quando acompanhava eleições num ou outro país africano.
A Alemanha de Angela Merkel vai estar à frente da União Europeia neste segundo semestre do ano, que hoje começa. Esta é certamente uma boa notícia para quem acredita no projecto comum e sabe quais são as grandes dificuldades que o mesmo enfrenta. A Europa está numa crise única, 75 anos após o fim da guerra, que fora, obviamente, um outro período de grande perturbação.
As crises dividem as pessoas, os países e as relações entre os Estados, mesmo entre os aliados. A Chanceler terá que encontrar meios para resolver as fracturas que existem no seio da União. Essa é uma das tarefas mais urgentes. É a sobrevivência do projecto comum que está em jogo. Juntam-se a ela a negociação com os britânicos, as tensões com os americanos, os conflitos com os russos e os turcos, a problemática do relacionamento com a China, e tudo o resto, que inclui a Síria, a Líbia, o Sahel, as migrações e o clima.
Não faltam problemas para resolver. Têm faltado liderança e coragem política. É nesses domínios que espero ver algum movimento. Angela Merkel vai ter que marcar a agenda, exercer uma presidência activa. Creio que o fará, na medida em que esta presidência surge nas vésperas da sua saída da cena política – prevista para o próximo ano – e que uma das suas preocupações deverá ser a de deixar um legado europeu durável.
Vamos começar o semestre com alguma pitada de optimismo, coisa difícil de arranjar nestes tempos bem complicados.
O Reino Unido sai hoje. Cumpre-se assim o Brexit. E perdemos todos, a União Europeia e o Reino Unido, cada um à sua maneira. Mas a política é assim, as regras democráticas, por muito imperfeitas que possam ser, são para cumprir. E Boris Johnson e os seus ganharam.
Dito isto, acrescento que alguns de nós vemos tudo isto com uma grande preocupação. A vitória de Boris foi a vitória da mentira, do apelo ao nacionalismo primário, do populismo sem-vergonha. Ganhou a insolência, perdeu o bom senso.
Em certa medida, esse tipo de vitória fica-nos como um alerta. Hoje aconteceu no Reino Unido, amanhã poderemos ter um gémeo ou uma irmã de Boris noutros países da Europa. Assim, se há uma grande lição a tirar de tudo isto, do Brexit, de Boris, de Farage, etc, ela é que não se pode dar tréguas aos aldrabões da política.