Uma pessoa conhecida, cidadã americana, comprou uma propriedade no Algarve, gastou mais de um par de milhões e pediu uma Autorização de Residência para Investimento (ARI). Anda há meses a tentar fazer uma marcação de atendimento no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Não consegue, os serviços online do SEF dizem não haver vagas para atendimentos ARI. Entretanto, a interessada começa a ficar convencida que essa história do ARI é uma armadilha do Estado português, destinada a captar investimentos e a fazer cair os investidores na ratoeira de uma burocracia que não funciona. E agora, com o desmembramento do SEF à porta, a cidadã americana está a entrar na fase da desilusão.
Entretanto, pensei recomendar-lhe que escreva ao Cabrita. O homem já não é ministro da coisa, mas talvez seja capaz de meter uma cunha.
Neste período de reabertura gradual das actividades económicas e outras, convém observar o que está a acontecer nos países que iniciaram o desconfinamento antes de nós. A China é o exemplo em que se pensa de imediato. E o que verificamos é uma quebra do consumo das famílias, na ordem dos 35 a 40%. A paralisação económica , que nalguns sectores foi quase total, teve um impacto enorme nos orçamentos familiares, cortando-lhes uma fatia importante do poder de compra. Por outro lado, as exportações, que são um dos principais vectores do crescimento da economia chinesa, diminuíram de forte substancial, à medida que os principais clientes da China entravam no pico da crise. Neste momento, a quebra do consumo e a travagem das exportações estão a provocar um desacelaramento da produção industrial.
No caso português, para além da questão do consumo das famílias e do poder de compra, temos pela frente uma crise muito grave em vários sectores, como o turismo, a hotelaria e a restauração. A quebra de receitas nessas áreas é significativa e não vejo uma retoma rápida. Entretanto, assistimos nos últimos meses a um endividamento insustentável de muitas das empresas, sobretudo das de média e pequena dimensão. Esses níveis de dívida, que na maioria dos casos não poderão ser cobradas, têm um impacto vastíssimo sobre a saúde da economia.
Por outro lado, o endividamento do Estado está a adquirir proporções nunca vistas. Para as atenuar, é fundamental que o fundo de recuperação europeu esteja a funcionar já em Junho e que o Estado deixe as empresas trabalhar, sem grandes empecilhos e burocracias absolutamente inúteis. Esta é uma excelente oportunidade para abolir muitas das regras e procedimentos administrativos que para nada servem excepto para alimentar todo um corpo de inspectores e de empurra-papéis.
Ter algo que tratar com a burocracia portuguesa exige muita determinação e um elevado nível de paciência. Consome, além disso, uma boa parte da energia de uma pessoa. E o desespero é ainda maior porque uma boa parte das imposições administrativas são meras fantasias, que de nada servem, excepto para manter o antiquado e a ilusão que tudo anda nos eixos. Não anda e criam-se oportunidades para esquemas paralelos.
Para quando, um ministério da limpeza burocrática?
Parece-me difícil de aceitar que um político que não fez mais nada na vida do que bajular os dirigentes do seu partido, colocando-se sempre do lado de quem estava a ganhar, venha agora criticar abertamente a falta de capacidade dos empresários portugueses.
Se há falta de capacidade e de espírito de inovação é na classe política que isso acontece. A grande maioria dos que estão no governo – para não falar de governos anteriores – são gente da máquina partidária, que não tem qualquer experiência da vida fora do casulo que protege os fiéis e os lambe-botas.
O papel do governo deve ser o de simplificar a vida dos cidadãos. Ora, aquilo a que assistimos vai no sentido contrário. Todas as semanas aparecem novas burocracias, regras e formalidades que nada acrescentam em termos de crescimento económico ou de bem-estar social. São meras invenções para justificar mais impostos, mais despesas, mais funcionários, mais arbitrariedades, para emperrar ainda mais a máquina administrativa, que já é pouco eficiente. É a política do tempo perdido, que nos faz perder tempo e dinheiro. É igualmente a atitude mesquinha de quem tem o poder, que vê os cidadãos como seres menores e irresponsáveis.
É essa maneira de exercer o poder que explica a “grande” ideia de obrigar os cidadãos com idade superior aos 65 anos a seguir uma “formação” – paga, claro –, se quiserem renovar a carta de condução. Isto, sem esquecer, que a maioria dos acidentes é provocada por gente jovem, de cabeça no ar e pé ligeiro. Tal e qual como os nossos políticos: cabeça no ar e mente acelerada pela cegueira estúpida de quem pensa que tem poder.
Diz-se repetidamente que as instituições da UE são muito burocráticas. Ou seja, que procuram regulamentar tudo e mais alguma coisa, até ao pormenor mais insignificante. Mas, na realidade, essas instituições não são mais do que um exemplo da cultura política dominante em muitos dos Estados da União. Uma boa parte dos nossos políticos, a começar pelos que nos vêm da França e da Alemanha, e continuar aqui em Portugal, tem uma mentalidade de funcionário. Para eles, o que conta é a produção de leis à tonelada, de regras para tudo e para nada, de procedimentos que tudo prevejam e apertem, na vã esperança de nada deixar escapar às malhas da administração pública. A política passou a ser uma espécie de funcionalismo público enobrecido. Não é por acaso que uma grande parte da classe política em França vem da École Nationale d´Administration, o famoso ENA dos privilégios.
São séculos de tradição legal que tem como base a desconfiança. O cidadão é um potencial maroto que precisa de ser controlado mesmo antes de se levantar da cama.
O Reino Unido é um dos poucos Estados que dá mais importância à liberdade de criar do que à espartilha do regulamento. O mesmo acontece nos países bálticos e pouco mais.
Alguém da família mais directa precisava de renovar o cartão de cidadão. Tinha agendado uma hora, esta tarde, para o fazer. E assim foi. Deslocou-se aos serviços de Registo e Notariado na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa. Há hora prevista, foi chamada pelo nome e a renovação foi efectuada, sem demoras nem complicações.
Fiquei surpreendido como a eficácia. E satisfeito, porque é assim que os serviços públicos devem funcionar.
Quem for à Baixa de Lisboa vê as ruas cheias de turistas. E nota-se igualmente que o centro da cidade se renova pouco a pouco. Turismo e investimento são duas boas notícias. Mas precisamos de mais, noutros sectores da economia e noutras partes da cidade e do país. É na expansão da economia que está o futuro. Não é nem na burocracia administrativa nem na estatização da iniciativa nem nas discussões infindáveis entre compadres da política.
Mas a economia precisa de instituições que funcionem. Uma economia sem regulação, sem proteção dos mais fracos, sem justiça, é a lei dos Salgados que impera. Ganham sempre os que têm mais poder. E afasta-se muito investidor que estaria disposto a arriscar se o jogo fosse limpo e justo.
Ou seja, a Baixa da cidade não nos pode fazer esquecer um país que precisa de levar uma reviravolta profunda.
A filosofia que inspira a organização e as funções do Estado em Portugal assenta na desconfiança, na convicção que é preciso controlar os cidadãos, que os portugueses são, de um modo geral, uns irresponsáveis cívicos e uns anarquistas sociais. É uma maneira de ver que não responsabiliza o cidadão. Vê cada um de nós como “chico esperto” que deve ser mantido debaixo de olho. Só que não temos meios para o fazer. E a vontade de tudo controlar dá lugar a um Estado ineficiente, burocrático até ao ridículo. Do lado dos cidadãos aparecem então toda uma série de esquemas para tentar contornar a ineficiência, a burocracia, os tempos de espera e outras aberrações administrativas.
Depois, lá fora, quem conhece o que por aqui se passa, diz que os portugueses complicam sempre aquilo que poderia ser resolvido de modo simples.
A tão falada reforma do Estado nunca diz nada sobre a necessidade de desburocratizar. Ora, nós temos uma concepção e uma prática da administração pública antiquadas, cheias de procedimentos administrativos desnecessários e com regras que só dificultam a vida dos cidadãos e oneram os custos. Como diria um amigo meu estrangeiro, que conhece profundamente Portugal, temos a tendência para complicar o que pode ser feito sem grandes complicações nem perca de tempo. E isto acaba por se traduzir na maneira de organizar a vida administrativa.
Há que simplificar. A reforma do estado e a diminuição da despesa pública também passa por aí. Mas por que será que ninguém insiste nesse ponto?