Sergey Lavrov foi à caça e voltou depenado. Ou seja, presidiu hoje à reunião do Conselho de Segurança da ONU, que havia convocado para tentar mostrar que o seu país é um grande defensor do multilateralismo. A coisa não correu como ele gostaria. À partida, Lavrov sabia que a reunião não seria fácil. Mas não estava à espera de que logo na abertura o secretário-geral das Nações Unidas viesse dizer, sem qualquer tipo de ambiguidade, que a Rússia tem estado a violar os princípios básicos da Carta das Nações Unidas e a provocar sofrimento e destruição na Ucrânia. Depois, vieram as acusações, no mesmo sentido, proferidas pelas embaixadoras dos EUA, do Reino Unido e da Suíça, e assim sucessivamente.
A intervenção de Lavrov não justificou nada e foi mesmo difícil de seguir. O ministro falou em russo, como seria de esperar, mas a grande velocidade, e a intérprete para a língua inglesa teve imensas dificuldades em acompanhar o ritmo. Assim, no momento, foi quase impossível compreender o que o ministro estava a dizer. Podia ter falado de modo mais lento, se de facto acreditasse na mensagem que trazia de Moscovo. Estava ali, no entanto, a fazer um frete ao patrão, e leu o texto com um tom e uma velocidade que mostravam que nem ele acreditava no que estava a dizer.
A sessão permitiu, em resumo, lembrar que estamos num momento muito perigoso da nossa história contemporânea. Também revelou que o Kremlin considera o Fundo Monetário Internacional como uma instituição hostil, algo que será certamente bem recebido por vários países fortemente endividados e totalmente dependentes da aprovação pelo FMI de programas de ajustamento financeiro. Esses programas têm normalmente um custo político elevado para os dirigentes de regimes corruptos ou irresponsáveis.
António Guterres discursou hoje, perante a Assembleia Geral da ONU, para partilhar a sua visão sobre a situação mundial actual e os seus planos para 2023. Foi um discurso claro e alarmante. O Secretário-Geral mostrou-se muito preocupado com o estado do mundo, que está a caminhar rapidamente para uma grande catástrofe. Mencionou, nomeadamente, o risco de uma guerra nuclear, o agravamento das questões ambientais e da pobreza, a falta de visão a longo prazo. E disse sem ambiguidade que essa falta de visão é propositada, que se vive a pensar no dia-a-dia. Não há nenhuma preocupação com o futuro nem com os direitos das pessoas mais frágeis.
O Artigo 51 da Carta das Nações Unidas afirma o direito inalienável de cada Estado à legítima defesa. Esse direito pode ser exercido de modo individual ou em aliança com outros Estados, que decidam ajudar o Estado agredido na sua resposta ao agressor. O mesmo artigo reconhece a autoridade do Conselho de Segurança, que deve ser imediatamente informado sobre o exercício da legítima defesa, para que possa tomar as medidas que forem necessárias para restabelecer o direito e a paz.
No caso da Ucrânia, o Conselho de Segurança está completamente bloqueado. Por isso, é o direito à legítima defesa que prima. E a Ucrânia tem todo o direito de procurar o apoio de outros Estados. Esse direito inclui a possibilidade do recurso a uma coligação militar, que ajude a Ucrânia a defender-se de um agressor mais forte. Essa possibilidade não pode, de modo algum ser excluída.
A Carta das Nações Unidas festeja hoje os seus 75 anos de existência. Assinada em São Francisco, na Califórnia, foi um documento visionário, aprovado por líderes de grande envergadura, que tinham acabado de viver a guerra mundial e queriam criar as condições políticas para que não voltasse a haver um conflito dessa magnitude.
No essencial, a Carta continua válida. Nas minhas actividades de agora, faço muitas vezes referência ao documento. E à autoridade que confere ao Conselho de Segurança e ao Secretário-geral. Na Carta não há equívocos nessa matéria. Só que a realidade política internacional está em transformação e nem sempre as novas circunstâncias são favoráveis ao desempenho de um papel mais activo, por parte da ONU.
Essa é a situação actual. O Conselho de Segurança está profundamente dividido. E as grandes potências procuram soluções bilaterais, fora do âmbito das Nações Unidas. O Secretariado e as agências estão inteiramente dependentes da boa vontade – que não é nenhuma – dos membros permanentes. Perderam a capacidade de definir a agenda, de tomar iniciativas estruturais e de poder lembrar os valores que devem reger as relações internacionais. Estão em modo de sobrevivência, que é um modo que, normalmente, não leva a parte alguma. Esperar que os tempos difíceis e os líderes actuais passem podem parecer uma boa estratégia, a de ganhar tempo. Veremos se vai dar resultado.
Prefiro uma intervenção mais visível e mais centrada no que é, de facto, essencial para o mundo de hoje.
De qualquer modo, é bom lembrar os 75 anos e a pertinência da Carta.