Hoje, na minha caminhada matinal ao longo do rio, o meu amigo António, que vende óculos de sol e paus para selfies em frente à Torre de Belém, foi directo ao assunto. Disse-me que não andasse na rua sem máscara, pois na minha idade bastaria apanhar uma gripe e seria o fim da história. Acrescentou que mesmo ele, que tem sessenta anos, anda de máscara. Como ele não sabe a minha idade, perguntei-lhe quantos anos me dava. Respondeu, com todo o respeito com que me trata, setenta e muitos, perto dos oitenta.
Tirou-me todas as ilusões. Depois, fiquei a pensar que devo estar a precisar de umas semanas de férias.
Durante a tarde, participei num colóquio internacional organizado pelo US Institute of Peace, uma organização com apoio federal, mas não- partidária, baseada em Washington. Participaram igualmente vários antigos colegas meus e muitos outros especialistas. À medida que cada um falava eu ia consultando a respectiva nota biográfica. A minha intervenção era uma das últimas, para dar um enquadramento mais geral ao que havia sido dito. Depois de mim, só falava mais uma académica, baseada no Canadá, uma pessoa bem mais jovem do que eu. Por isso, quando chegou à minha vez já era possível constatar que eu era o orador e o participante mais velho de entre todos.
E lembrei-me do António. Só que por videoconferência não é preciso colocar uma máscara. Mas poderia ter posto uns óculos de sol, para disfarçar as rugas. Os que o António vende, quando vende, que o negócio está muito fraco, para pouco mais servem do que ocultar as ditas.
O meu amigo que toca harmónica perto do Padrão dos Descobrimentos raramente faz 10 euros por dia. É verdade que não é um grande músico. Mas está no seu posto todas as manhãs, à espera do turista que passa. E hoje já passavam mais. Também já se viam alguns turistas maduros de idade. Até agora, nas últimas semanas e desde que começaram a aparecer os primeiros visitantes, o que o meu amigo via eram casais jovens. O surgimento de gente mais velha deu-lhe alguma esperança.
Mas o movimento ainda é pouco e espaçado. Mais à frente, junto à Torre de Belém, um outro amigo habitual, o que vende óculos de sol e paus para selfies, continuava hoje a queixar-se. Disse-me que nota que as pessoas estão mais agarradas ao dinheiro. E fez toda uma leitura económica sobre esse tema. Nomeadamente que ainda estamos em tempos incertos.
Fica sempre feliz quando lhe presto alguns minutos de atenção. Na realidade, pessoas da sua condição não são ouvidas. São, quando muito, toleradas. Ora, precisam de fazer parte do diálogo.
Depois, já no final da nossa conversa, falámos do tempo. Também anda incerto.
Um dos meus amigos ciganos, que vende óculos de sol em frente à Torre de Belém, voltou agora ao seu posto de labuta, depois de meses de ausência. Não servirá de muito, porque não há movimento, não aparecem turistas pela zona. Mas, mesmo assim, ele voltou e lá anda com uma série de óculos na mão, à espera de um tempo novo, que decerto acabará por vir.
Disse-lhe esta manhã que a sua presença, o seu regresso me dá uma certa esperança. Se ele acredita que a vida vai recomeçar, ele que é também uma pessoa de idade como eu, quem sou eu para lhe dizer o contrário.
Se por lá passarem e virem um homem de fato preto e com um ar magricela e frágil, pronto para vos vender um par de óculos de sol – cinco euros fazem a festa, se o cliente for lusitano – pensem que ao comprar estão também a alimentar a esperança em dias melhores.
A violência que ocorreu a noite passada, contra as instalações e o piquete dos Bombeiros de Borba, não é admissível. Mais ainda, fechar os olhos e passar em frente, porque o grupo atacante pertence a uma minoria cultural portuguesa, seria um erro político grave. Com o tempo, acabaria por dar combustível a quem quer fazer política com base na exclusão e no racismo.
Quem se comporta como o grupo se comportou tem que ser julgado. Com as agravantes de assalto em grupo organizado e de violência, ameaças e danos contra uma instituição que é fundamental ao nível da vida comunitária portuguesa.
Veremos como tudo isto virá a ser tratado.
Entretanto, seria conveniente ouvir uma voz que represente o poder político, uma voz que mostre, no mínimo, uma forte solidariedade para com os Bombeiros Voluntários de Borba.
Ninguém lhe pergunta pelo nome. Há anos que passa o dia na esplanada da rosa-dos-ventos, junto ao Padrão dos Descobrimentos, em Belém. A vender óculos de sol. Durante alguns anos, foi o único vendedor. Agora, o sítio está cheio de “ciganos”, como ele diz, todos no mesmo negócio. Ele também é cigano, mas de outra estirpe, um verdadeiro senhor, sem sotaque e sempre bem apresentado. Elegante, à sua maneira, que quem vende deve inspirar confiança.
Para quem passa, hoje ou frequentemente, é apenas um velho cigano que por ali anda, 67 anos de idade, a tentar vender uns óculos que poucos compram. Na verdade, com a concorrência que por ali há agora, tem dias em que vende apenas um par. Diz que mesmo assim vale a pena, que isso o ajuda a passar o tempo, permite-lhe sair de casa, longe do rio, na zona de Loures.
Nestes últimos tempos, anda encostado a uma canadiana. Tantos anos de pé, à volta do mundo que está desenhado no chão da rosa-dos-ventos, deram-lhe cabo de ambos os joelhos. De vez em quando não se aguenta nas pernas e cai. Mas com a afluência de turistas, há sempre quem o ajude a levantar-se. Um vendedor de óculos de sol vive e sobrevive de pé.
Está inscrito no Hospital de Loures há muito mais de dois anos, para fazer a operação que os joelhos lhe pedem. No chamado Serviço Nacional de Saúde. Já o convocaram, há cerca de um ano, para falar com o anestesista. E depois, é só esperar. E lá continua à espera, talvez mais um ou dois anos. Nessa altura, já deverá andar de cadeira de rodas, sempre à volta do mapa do mundo. O SNS pode não funcionar, mas a vida de vendedor ambulante não pode parar.
Entretanto, vai-se consumindo na resignação revoltada de quem não tem nome nem acesso. E de quem sabe o que significa ter que esperar pelo SNS.
O Diamantino é, afinal, à sua maneira, como muitos de nós.
Este é o link para um estudo sociológico sobre as comunidades ciganas em Portugal, efectuado em 2014, com o patrocínio do Alto Comissariado para as Migrações. Continua a ser o retrato social mais completo sobre os ciganos portugueses.
Um estudo esquecido, que deveria ser lembrado. E completado por um outro, que das atitudes que os portugueses não-ciganos adoptam face aos membros desta comunidade que vive nas margens do nosso quotidiano, excepto nos maus momentos.
O ruído político à volta das declarações proferidas por um candidato à autarquia de Loures destina-se apenas a ganhar pontos. Faz parte do arremesso a que os partidos se habituaram e do comentário pela rama, que caracteriza a nossa maneira de tratar a opinião pública. As referências a valores fazem parte do ritual.
A verdade é outra. Sabe-se muito pouco sobre o quotidiano e as práticas das nossas comunidades ciganas, para além do preconceito e dos estereótipos.
Os políticos, de maior ou menor dimensão, mas todos de talha baixa, falam sobre os nossos concidadãos ciganos sem terem ideia alguma do que estão a falar. Nem saber sobre o assunto lhes interessa de sobremaneira. Se houvesse de facto uma preocupação a sério sobre essa categoria de portugueses já teriam sido feitos estudos oficiais, até mesmo, criados grupos de trabalho parlamentar. E teriam existido debates de fundo, que o tema é complexo e deve ser visto sob várias dimensões.
Mas esses cidadãos são pura e simplesmente ignorados. Ninguém que ver o problema de frente. Agitam-se umas bandeiras e procura-se, assim, enganar a realidade.
Nesta altura do ano, as minhas caminhadas diárias passam pela esplanada da Torre de Belém. E mesmo agora, já tarde em setembro, a zona está cheia de turistas. Neste momento, são sobretudo gente da terceira idade, vinda até Lisboa nos navios de cruzeiros. E todos os dias lá estão cerca de duas dezenas de gente nossa, cigana, os homens a tentar impingir aos turistas paus para tirar selfies, uns sticks de plástico barato, e as mulheres, xailes de fibras artificiais, fabricados num qualquer país da Ásia, e comprados aos quilos, num qualquer canto mais escuro do mercado informal em que os nossos concidadãos ciganos se movimentam bem. Quando recentemente indaguei como ia o negócio, um dos homens disse-me que este tipo de turistas dos cruzeiros não compra paus nem panos. Mas a verdade é que ele e os outros e outras lá estão, persistentemente. Por vezes, nem deixam os turistas tirar as suas fotos em paz, tal é a ânsia de vender. Ainda hoje assisti a uma cena dessas, com o velho turista a implorar que o deixassem em paz, para poder tirar uma ou duas fotografias à Torre. Por vezes, a PSP aparece no local. E nessa altura, pode tirar-se toda a fotografia que se quiser, na maior das tranquilidades. Os meu amigos vendedores desaparecem da esplanada, num segundo, como que levados por uma rabanada de vento frio. Nessa altura, não há pau nem xaile para ninguém.
Em Bruxelas, depois de vários dias de alerta máximo, a segurança é o tema que predomina. Quase não se fala noutra coisa, nas ruas e nos gabinetes das instituições. A presença de polícias e militares um pouco por toda a parte dá ainda maior visibilidade à questão. E a evidência é que há menos gente nas ruas e nos lugares públicos, sem contar que vários centros comerciais da capital continuam fechados, quatro dias depois do anúncio do estado de alerta máximo. No metropolitano, reina o silêncio. As pessoas olham-se e fecham-se no seu canto. O receio pode ter dado lugar à apreensão. A atmosfera da capital da Europa ficou mais cinzenta.
Do outro lado da fronteira, em França, temos agora uma situação de exceção, por um período incrivelmente longo de três meses. É, em certa medida, uma situação estranha, em que o excecional passou a ser a nova normalidade. Para além do excesso de exceção, fica a interrogação se três meses não querem dizer que o assunto é mais grave do que aquilo que nós, que não temos as informações todas, possamos imaginar. Ou será um golpe político, para mostrar que se é um bom cabo-de-guerra, um chefe que poderá assim ter mais hipóteses de ser reeleito? A verdade é que há homens armados por todos os lados. Dir-se-ia, se os tempos estivessem para ironias, que os uniformes de combate parecem ser o novo grito da moda francesa.
Mais a norte, no Reino Unido, acaba de ser aprovado um novo orçamento de defesa, que permitirá às forças armadas gastar em equipamento, nos próximos dez anos, 178 mil milhões de libras, uma enorme quantidade de dinheiro. A justificação dada pelo primeiro-ministro britânico assentou nos recentes acontecimentos em Paris e em Bruxelas, bem como nos atentados que têm ocorrido aqui e acolá, fora da Europa, enfim, na necessidade de reforçar a segurança nacional. Mas estará certo investir preferencialmente na defesa, quando o desafio parece ser, acima de tudo, uma matéria de polícia?
E um pouco por toda a parte, os extremistas xenófobos tentam ligar o islão e os fluxos migratórios ao clima atual de insegurança. Trata-se, como o leitor sabe, de uma ligação incorreta. Mas que dá frutos. Todos os analistas que estudam a opinião pública, sobretudo no centro e no norte da Europa, nos dizem que a rejeição dos cidadãos de fé islâmica e a recusa da aceitação de refugiados estão a ganhar terreno. Veremos que resultados sairão das próximas sondagens aos europeus. Em meados do ano, à volta de 40% dos cidadãos da Alemanha, Dinamarca, Finlândia, França, Noruega, Reino Unido e Suécia tinham uma opinião negativa sobre os muçulmanos, um valor que só era ultrapassado pela perceção sobre os ciganos, que ultrapassava os 50% de negatividade.
A verdade é que a UE está agora confrontada com novos desafios de segurança. E que é preciso que haja um debate coletivo sobre o assunto, e uma resposta comum. A segurança é uma das obrigações essenciais dos Estados de direito. Mas, no caso europeu e tendo em conta a interdependência entre os países, as respostas nacionais, país por país, só resultarão se estiverem integradas num conjunto coerente e aceite por todos os Estados membros. É preciso uma liderança europeia para uma questão que atinge a todos.
A liderança deve começar pela afirmação da primazia dos valores da liberdade, da tolerância, dos direitos humanos e da inclusão social. Salvaguardar esses valores, bem como a integridade física dos cidadãos e os seus bens, são os objetivos fundamentais de uma política integrada de segurança.
Haverá quem, no interior da UE e fora dela, procure sabotar esses objetivos e destruir a coesão europeia. Se o tentar fazer de modo violento, terá que se confrontar com a ação das forças e serviços que têm como função garantir a tranquilidade das pessoas. Mas esses serviços, para poderem ser mais eficazes, precisam de trabalhar num quadro de colaboração mais estreito e mais franco que o atual. É fundamental passar a um nível superior de cooperação entre os serviços nacionais de inteligência e de polícia. Em simultâneo, há que rever as funções da EUROPOL. Se assim acontecer, o que neste momento infelizmente ainda não é uma certeza, estaremos então a caminhar no sentido certo.