No meu supermercado de bairro, os corredores entre as diferentes prateleiras são estreitos. Os clientes acabam por andar, num sentido figurado, aos empurrões uns aos outros. Não há espaço para grandes distanciamentos. Ninguém reclama, não há conversas nem troca de palavras. Cada um trata de fazer as suas compras tão rapidamente quanto possível. Depois, dirigem-se às duas ou três caixas que estão abertas – a loja tem mais caixas, mas raramente abrem todas ao mesmo tempo. Aí, enquanto esperam pela vez de passar pela caixa, certas pessoas lembram-se das recomendações sanitárias. E zangam-se se os dois metros não são respeitados. Curiosamente, são as que parecem ter mais poder de compra que normalmente refilam e lembram as regras aos outros. Assim, às vezes fico na dúvida se se trata da afirmação da regra de saúde pública ou de uma manifestação de poder social, de hierarquia na escala das classes.
Hoje volto a uma questão que já aqui foi levantada e que continua sem resposta. Como se define a classe média?
Vários políticos e outros habilidosos do comentário público falam amiúde da classe média. E dão a impressão que esta é uma categoria social onde cabe quase todos, desde que tenham um emprego ou um rendimento mensal previsível, capaz de satisfazer as necessidades básicas de uma família nuclear, ou seja, as despesas de alimentação, habitação, escolares, de saúde, vestuário, calçado e de lazer. Dito de outra maneira, uma família que conseguisse chegar ao fim do mês sem dívidas extras, para além da habitual prestação da casa, depois de ter pago todas as contas resultantes de uma existência sem exageros nem loucuras, mas sem apertos nem desassossegos, estaria dentro da classe média.
Muito bem. Mas mesmo assim, conviria falar de valores. Aqui, onde vivo, o intervalo seria entre os dois mil e quinhentos e quatro mil e quinhentos euros mensais líquidos por família. A distância entre estes dois valores extremos mostra claramente que estamos a tratar de um conceito amplo e relativamente vago. Dão, no entanto, alguma precisão a uma classe que se define, antes de tudo, pela maneira subjectiva como cada um vê a sua posição na escala social.
Anda por aí uma assanhada discussão sobre a classe média. No essencial, tudo parece girar à volta dos ataques que o governo estaria a fazer contra essa classe. Daí resultaria um definhamento acelerado da classe média portuguesa.
Não há, todavia, acordo sobre os parâmetros que definiriam a classe média. Nem sobre o nome que se deve dar à classe abaixo da classe média: classe trabalhadora ou proletariado – este termo caiu em desuso?
O que parece indiscutível é que o empobrecimento da população portuguesa chegou agora àqueles que estavam habituados a uma vida com certas folgas e que não eram atingidos pela precariedade do emprego e dos rendimentos. Eram essas as duas características que os levavam a pensar que pertenciam à classe média. Ou seja, a crise fê-los descobrir aquilo que muitos outros cidadãos, os pobres e os sem-recursos, já sabiam de há muito. Tem sido um choque tremendo.
A experiência diz-nos que quando os que se consideram “classe média” se vêem em risco de pobreza tudo pode acontecer. É que para muita gente da classe média, a pobreza só pode ser aceite quando são os pobres, os debaixo, a experimentá-la.