Hoje uma parte de Portugal, o Sul pelo menos, teve a oportunidade de perceber os efeitos da desertificação que todos os anos avança em África. O céu esteve coberto de pó vindo do Saará. Já ontem havia acontecido o mesmo. Este fenómeno climático é cada vez mais extenso, atingindo agora partes da África Central e Ocidental que dantes ficavam de fora. E também se faz sentir na Europa, na Península Ibérica e na parte Meridional da França.
No Sahel, nesta altura do ano, em certos dias é impossível a um helicóptero aterrar. Não há visibilidade suficiente para isso. Aconteceu-me várias vezes. A única solução era voltar para trás.
Numa altura em que a NATO e a UE se reúnem, cada uma para seu lado, sobre os passos seguintes, no que respeita ao drama líbio, em que a França decide reconhecer, sem consultar os seus parceiros, o conselho rebelde, e em que ministros dizem, Kaddafi c'est fini, publico um novo texto na Visão.
É uma reflexao sobre a maneira como a Europa tem estado a responder aos acontecimentos no Norte de África.
Procura também ser uma contribuição serena, numa altura em que a Europa parece estar mais agitada que nunca, sem saber bem para que lado se voltar.
A última missão que fiz no Chade levou-me ao deserto de Ouara, nas terras do Sultão de Ouaddai. Encontrei alguns dos habitantes. Sim, aqui vivem pessoas.
É uma zona de rara beleza, onde nos sentimos bem, mas com uma noção mais clara da nossa pequena dimensão. O deserto ensina-nos a o valor da modéstia.
A poeira entrou no nosso quotidiano. Vive-se com a obsessão do pó. A vida sabe a areia. O cheiro, é como um perfume seco que nos fecha as narinas e nos impede de respirar. Está tudo seco e meio parado, que este clima não dá para grandes saídas.
Entretanto, perto da minha residência, pelas 19:00, uma das nossas funcionárias foi bloqueada por um veículo de salteadores armados. Para roubar o carro, propriedade da ONU. Um todo-o-terreno, muito procurado, fácil de vender. Mais um veículo que se foi. Os bandidos começaram agora a perceber que é fácil atacar em N'Djaména e não se ser apanhado. É uma cidade com milhares de cantos, impossível de controlar. Um labirinto de areias deslizantes. Um pesadelo, em matéria de segurança.
As forças de reacção rápida da minha Missão chegaram ao local uns minutos depois. Mas o que a colega queria era apoio psicológico. Foi uma experiência de meter medo.
N'Djaména está sem ligações aéreas com o resto mundo desde Quinta-feira. Completamente isolada. Sucessivas tempestades de areia e de pó fino fecham o horizonte e paralisam a vida quotidiana. As casas, as máquinas, as pessoas, está tudo com uma camada de pó, como se fosse uma nova pele, bem espessa, que se viesse sobrepor ao coiro duro que a natureza nos deu. O pó não pede licença para entrar no íntimo das nossas vidas. Penetra por todos os orifícios, enche-nos a boca e a os miolos, fica tudo emperrado, com o sabor da terra seca a dominar-nos o pensamento.
Só quem tenha experimentado este tipo de fenómenos climáticos pode compreender o que é viver no meio de nuvens de poeira.
A minha viagem de regresso, prevista para amanhã, está agora suspensa no ar pesado que sopra dos desertos. Será que vou poder voar? Hoje à noite, o prognóstico é muito negativo.
As aves de rapina planam a grande altitude. Uma vez o meu jet quase que chocou com uma águia de grande porte, a cerca de 3 500 metros acima do solo. Uma cena que se mantém viva, na memória que muito esquece.
São passarões pacientes, silenciosos nos seus voos, muito focalizados, certeiros quando atacam.
Lembro-me de certas águias do Zimbabwe, que vivem à custa dos babuínos. Quando os macacos se sentam nos rochedos, ao fim da tarde, para aproveitar os últimos raios solares e descansar, os rapináceos mergulham a toda a velocidade, caiem dos céus com as garras fechadas, e dão um violento soco na cabeça da vítima. O voo seguinte é para levar o corpo assim atordoado, ou mesmo, já morto, por motivo de traumatismo craniano.
Quando se vive em terras destas, é melhor andar com os olhos sempre bem abertos. E não se deixar levar pela quietude dos dias que se esgotam. Caso contrário, teremos uma oportunidade única de ser o macaco de uma história triste.
Havia, outrora, um cão perdido no deserto. Não era da variedade local, um tipo de galgos esbeltos, castanhos e dourados, de orelhas atentas e ponteagudas -- tive um desses exemplares quando estive na RCA, levei-o para a Gâmbia, quando fui enviado para essa terra, era um animal de uma inteligência rara, Rex de seu nome, e de facto tinha a postura. Mas o bicho desta historieta não era nem nunca havia sido um galgo das areias do Sahel. Era um animal como todos os outros, rafeiro vagabundo nos calores das miragens. Um pobre diabo a viver no meio de paisagens de muitas cores e de tons fortes.
Sentia-se tão perdido que cada vez que via passar uma caravana de homens tentava aproximar-se, passar a fazer parte da trupe. Mas os homens, quando o enxergavam ao longe, viam uma fera das dunas, não o miserável cachorro que o bicho era. Disparavam sua direcção, afugentando assim o infeliz solitário.
Acabou por perecer num dia em que a tempestade de areia foi ainda mais severa. Mas, na memória dos caravaneiros e dos que andam em fila indiana, ficou a imagem de uma besta feroz, caçador implacável e arguto, que só podia viver no meio das pedras secas.
Ouvi bons discursos, durante a minha visita de hoje a Farchana e Hadjer Hadid, a dois passos da fronteira do Chade com o Sudão. Duas zonas de violência, de massas de refugiados e de deslocados, duas zonas em que o controlo das nossas forças começa a ganhar forma. No meio de tanta secura, foi bom escutar um par de discursos elegantes, bem estruturados, de improviso, mas cheios de significado. Palavras ditas bem e com equilíbrio ajudam a resolver os problemas. Afinal, o ser humano é um animal que precisa de comunicar.
E em política, a elegância da palavra justa é uma arte que aprecio.
Fiz centenas de quilómetros na poeira do deserto, visitei vários campos de refugiados, encontrei-me com dezenas de trabalhadores humanitários, vi gente a sofrer nos hospitais de campanha, crianças sem escolas, sem alimentação, mulheres que são violadas quando vão à procura de lenha, polícias corajosos, como o Coronel Ahmat, só ossos, mas uma grande experiência de combate e uma inteligência fina e sensível. Um homem sem medo.
Viajei estes dias com um um enorme lenço à volta do pescoço e do nariz, à la palestiniana, tentei proteger-me do pó fino, mas acabei o dia a sangrar do nariz, a tossir e castanho como uma maçã reineta meia podre. A minha figura era tão pouco usual, com o pano aos quadradinhos cor de areia à volta da cara, o nariz a apontar na direcção da estrada, que acabei por dizer aos meus guarda-costas que, se houvesse uma emboscada, os bandidos fugiriam de horror, ao ver-me nessa figura estranha. Um horror, sentado no banco da frente.
Mas voltei a encontrar gente de muito valor. Que nos ensinam a ser modestos e atentos aos outros.