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Vistas largas

Crescemos quando abrimos horizontes

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Lembrar o Senegal

O taxista que me levou ao aeroporto, em Bruxelas, tem as suas raízes no centro do Senegal, numa cidade – Kaolack - de uma região árida, a meio caminho entre Dakar e Banjul, na Gâmbia.

 

Passei muitas vezes por Kaolack, mas não me lembro de alguma vez ter parado e saído do carro: quem quer visitar uma terra de pó e de cabras, um centro urbano perdido no meio de um descampado inóspito, uma cidade atacada por todos os lados pela pobreza e a desertificação?

 

Hoje, disse-me, a situação está ainda pior. Há mais areia e menos esperança. Como em muitos outros sítios do Sahel. As famílias vivem das remessas que os seus filhos lhes enviam do estrangeiro, que há senegaleses emigrados em todos os cantos do mundo.

 

No caso do meu taxista, 390 euros seguem mensalmente em direcção a Kaolack. Os seus irmãos e outros parentes mais chegados enviam também a sua parte. O destinatário é a irmã mais velha, que ficou e substitui, como chefe da família, a mãe de todos, entretanto falecida. A irmã funciona como o centro de uma família alargada, várias gerações que ficaram para trás. Recebe um total de 2400 euros de remessas mensais e com esse dinheiro cuida e faz viver e estudar mais ou menos sessenta membros da família. A sua casa de Kaolack é como uma aldeia dentro da cidade, onde mora tudo menos o futuro.  

Darfur

Khalil Ibrahim, fundador e líder do movimento rebelde JEM (Justice and Equality Movement), que lutava, à sua maneira, pelos direitos das populações africanas do Darfur, no Sudão, perdeu ontem a vida. As Forças Armadas Sudanesas dizem que foi num combate, depois de o terem perseguido, num estado vizinho do Darfur, numa zona que é disputada entre o Sudão e o Sul Sudão. Vai ser difícil conhecer as circunstâncias exactas, numa país onde a verdade e a invenção não têm fronteiras bem definidas.

 

Também ainda é cedo para se poder estimar o impacto desta morte no processo de paz do Darfur.

 

Cruzei-me várias vezes, no Leste do Chade com os homens de Khalil. Havia uma espécie de acordo tácito. Quando eu estava numa região do Leste, os guerreiros do JEM evitavam aparecer à minha frente. Uma vez, estava eu numa reunião em Bahai, no Nordeste do Chade, mesmo junto à fronteira com o Darfur, quando surgiram, inopinadamente, dois ou três veículos do JEM. Vinham do campo de refugiados que se encontrava a cerca de 20 quilómetros. Estavam, como de costume, fortemente armados e tinham cara de poucos amigos. Quando viram os meus guardas, fizeram meia-volta e desapareceram no meio do deserto sem fim. 

 

Em N'Djamena, chegámos, por uns tempos, a viver no mesmo hotel. Mas nunca nos cruzámos no lobby. As tangentes nunca se encontram. 

 

Andar no deserto

 

Copyright V.Ângelo

 

A última missão que fiz no Chade levou-me ao deserto de Ouara, nas terras do Sultão de Ouaddai. Encontrei alguns dos habitantes. Sim, aqui vivem pessoas.

 

É uma zona de rara beleza, onde nos sentimos bem, mas com uma noção mais clara da nossa pequena dimensão. O deserto ensina-nos a o valor da modéstia.

Um dia de calor

 

O dia de ontem terminou com uma festa de despedida. Organizada pelo pessoal da MINURCAT, os da Sede, em N´Djaména, com a participação animada de um dos melhores grupos de dança tradicional do Sul do Chade. Uns dançarinos excepcionais, que nos revelaram várias facetas das cerimónias de iniciação, que continuam vivas nestas paragens. Foi também interessante ver alguns dos nossos jovens funcionários nacionais, que normalmente andam de fato e gravata, acompanhar os ritmos, como se a música fizesse parte dos seus génes.

 

Este é um país culturalmente muito diverso. Enquanto os tambores do Sul batem com a energia da África banto, fazendo vibrar todos os poros dos que sabem viver esssas músicas, e acentuando o erotismo das florestas por explorar, os naturais do Centro e Norte mexem o corpo, lentamente, com a graça oriental das cortes dos sultões.

 

Entre os pratos tradicionais, havia uma dobrada de cabra, certamente um animal duramente experiente da vida, preparada pela minha Assistente de muitos anos, uma mulher das terras mais amenas da África Austral. Claro que tive que me servir. O resto, não digo.

 

Foi um fim de tarde quente. Durante o dia a temperatura do ar andou a namorar os 48 graus. Em Março, é assim.

 

A manhã começara com uma reunião com todos os embaixadores residentes em N'djaména. A reunião mensal, que para mim foi a última, era a oportunidade para dizer "Thank you" e passar à frente. Tudo muito correcto, sem mais. Depois, tive um longo tête-à-tête com o Presidente Idriss Deby. O encontro começou em público, com a minha condecoração com o grau de Oficial da Ordem Nacional do Chade. Um gesto raro. Uma Ordem de elite. Depois, ficámos sós, para falar sobre o Sudão, esta parte do Continente Africano, projectos, água, um tema central para as gentes do Sahel, segurança, e o futuro das Nações Unidas nestas areias. Foi um diálogo com elevação, descontraído, que as ideias são para serem confrontadas, não as pessoas.

 

Já mais tarde, à hora das orações de Sexta-feira, o Representante Especial do Presidente ofereceu-me um camelo. Lindo. Com calabaças e tudo, aparelhado a rigor. O RE, que responde pelo nome de General Dagache, quatro estrelas e muitas dunas de combate,  batalhas muitas, a morder o pó dos ventos áridos, homem com ossos e pele, mas nada mais, que o deserto não é para grandes comidas, é natural do Sahara, não muito longe do fim do mundo que é a região de fronteira com a Líbia. O camelo é a fonte da vida, nesses cantos perdidos, onde a beleza das montanhas roídas por milhões de anos de vento nos faz imaginar catedrais do surrealismo mais ousado. O camelo e água, que brota aqui e ali, nos oásis que se escondem para além das miragens.

 

O meu camelo está agora em casa, grande e majestuoso, à espera de um caixote que o leve para as terras molhadas da beira-Tejo. É uma peça de madeira que vale a pena que atravesse o deserto. 

 

Água doce

 

Copyright V. Ângelo

 

 

Comecemos pelas contas. Um hora no jacto, a caminho do Nordeste, 800 km. Mais 80 minutos de helicóptero, em direcção ao Norte, são à volta de 300 km. Já em terra, no deserto, 20 minutos de carro, 7 km. Uma viagem longa, com ida e volta, hoje. Mas continuemos as contas. Uma hora de permanência no local, 30 kg de areia por toda a parte do corpo e do vestuário. Fomos apanhados por uma tempestade de pó fino e areia grossa. Deu para termos um almoço de areia, que entrava por onde podia e nos arranhava a garganta.

 

Um balanço pesado. Que, todavia, valeu a pena. Inaugurámos, no sítio onde apenas a secura é abundante, um poço artesiano de 130 metros de profundidade. Os meus militares noruegueses, senhores de um equipamento de prospecção avançado, descobriram na zona, em Iriba, a mais de 100 metros no subsolo, depois de uma camada de argila quase impenetrável, um lago subterrâneo. Tem cerca de 5 km de comprimento e 200 metros, da superfície ao leito. Em pleno deserto.

 

A capacidade de produção diária é de 125 metros cúbicos. As reservas actuais cobrem as necessidades de várias gerações vindouras, se forem bem administradas.

 

Uma verdadeira revolução. Quando a água começou a sair das entranhas da terra, a população nem queria acreditar. As crianças colocaram-se à frente do jacto de água e dançavam, encharcadas até aos ossos. Claro que com o pó que haviam acumulado, foi uma limpeza.

 

Quem não gostou da festa foi o Sultão da área. Sua Majestade possuía, até agora, os dois únicos miseráveis furos da região. A venda de água tem sido uma das suas principais fontes de riqueza. E de poder, que o líquido da vida é um instrumento de controlo dos outros.

O Prefeito, que é a autoridade administrativa da região, sempre viu o poder do Sultão com maus olhos. Rivalidades. São familiares, aliás, mas cada um puxa a manta do mando para o seu lado. Agora, a dinâmica social vai ter mais água pelo meio.

 

A fotografia, no alto da página, mostra um canto do oásis de Iriba. Mesmo onde a vida é dura, há sempre a possibilidade de usufruir da sombra mais fresca de um oásis.

 

 

 

Enxurradas

 

Depois de passar o dia no Leste do Chade, nos castanhos, tons tão variados, a encher os olhos e a dar cor às terras duras que são a minha vida de agora, voltei a casa e encontrei o meu quarto invadido. A gatinha preta, que fora adoptada durante a minha ausência em Paris, resolveu aproveitar a minha saída, sabendo-me perdido no deserto, para passar o dia deitada na minha cama, mesmo debaixo da ventoinha. Um luxo. Uma gatinha que sabe apreciar os pequenos prazeres da vida. Pequenos, porque no meu quarto, com a ventoinha a todo o valor, a temperatura nunca desce abaixo de 39 graus. 39, sim! Centígrados, meus senhores e minhas senhoras. Andar de calções, no quarto, é expor as pernas ao ar quente e sentir a carne a cozer em lume brando. Um pequeno luxo, de facto, essa ventoinha feita por um chinês do século passado.

 

A malandreca aproveitou bem o seu dia ao fresco. Nem para fazer as necessidades mais primárias saiu do quarto. Só que os meus polícias pensam que a gatinha é um elemento das Operações Especiais e alimentam-na bem. A produção foi em grande quantidade. Uma enxurrada. Tive que pedir a ajuda da turma de prevenção. A nossa polícia é de uma valia a toda a prova.

 

Foi um incidente que me fez bem. Permitiu que me esquecesse da " outra produção", a que sai da política portuguesa, com uma evacuação diária. Uma outra enxurrada, nos jornais e nas televisões. O PGR, por exemplo, um assunto actualmente muito na moda em Portugal, faz pensar numa lagartixa mansa, ao lado da nossa gatinha. Talvez a única coisa que tenham em comum é o oportunismo ocasional, o aproveitar o ar fresco, quando ninguém está a olhar. Só que, mais tarde ou mais cedo, chega a guarda e é um fugir a quatro patas.

 

Permitiu também esquecer que o investimento feito pelas Nações Unidas, no Leste do Chade e na RCA, está em riscos de ir por água abaixo. O que é uma maneira de dizer, pois na secura destas paragens, poucas águas existem. Todavia, esta enxurrada vai deixar muita coisa por fazer. E muita gente por proteger.

 

Não estou a fazer o elogio do cócó da gatinha que partilha as penas do nosso calor.  Entendam bem, que há que ter respeito por estas matérias. Mas a verdade é, que no meio de tanta merdice, há porcarias que não fazem mal ao coração.

Entre as dunas da memória

 

Estou de regresso aos meus desertos.

 

Havia, outrora, um cão perdido no deserto. Não era da variedade local, um tipo de galgos esbeltos, castanhos e dourados, de orelhas atentas e ponteagudas -- tive um desses exemplares quando estive na RCA, levei-o para a Gâmbia, quando fui enviado para essa terra, era um animal de uma inteligência rara, Rex de seu nome, e de facto tinha a postura. Mas o bicho desta historieta não era nem nunca havia sido um galgo das areias do Sahel. Era um animal como todos os outros, rafeiro vagabundo nos calores das miragens. Um pobre diabo a viver no meio de paisagens de muitas cores e de tons fortes.

 

Sentia-se tão perdido que cada vez que via passar uma caravana de homens tentava aproximar-se, passar a fazer parte da trupe. Mas os homens, quando o enxergavam ao longe, viam uma fera das dunas, não o miserável cachorro que o bicho era. Disparavam sua direcção, afugentando assim o infeliz solitário.

 

Acabou por perecer num dia em que a tempestade de areia foi ainda mais severa. Mas, na memória dos caravaneiros e dos que andam em fila indiana, ficou a imagem de uma besta feroz, caçador implacável e arguto, que só podia viver no meio das pedras secas.

 

Voltei com muito pó

 

Copyright V.Ângelo

 

Fiz centenas de quilómetros na poeira do deserto, visitei vários campos de refugiados, encontrei-me com dezenas de trabalhadores humanitários, vi gente a sofrer nos hospitais de campanha, crianças sem escolas, sem alimentação, mulheres que são violadas quando vão à procura de lenha, polícias corajosos, como o Coronel Ahmat, só ossos, mas uma grande experiência de combate e uma inteligência fina e sensível. Um homem sem medo.

 

Viajei estes dias com um um enorme lenço à volta do pescoço e do nariz, à la palestiniana, tentei proteger-me do pó fino, mas acabei o dia a sangrar do nariz, a tossir e castanho como uma maçã reineta meia podre. A minha figura era tão pouco usual, com o pano aos quadradinhos cor de areia à volta da cara, o nariz a apontar na direcção da estrada, que acabei por dizer aos meus guarda-costas que, se houvesse uma emboscada, os bandidos fugiriam de horror, ao ver-me nessa figura estranha. Um horror, sentado no banco da frente.

 

Mas voltei a encontrar gente de muito valor. Que nos ensinam a ser modestos e atentos aos outros.

Uma vida em movimento

 

Copyright V. Ângelo

 

Esta é a altura do ano. A estação seca é um momento de grandes movimentos, em toda a África Saheliana.

 

As populações deslocam-se para Sul, com os animais, à procura de pastagens, as mercadorias circulam, porque as estradas voltam a ser praticáveis, os mercados reaparecem e, também, para que os stocks estejam altos quando chegarem as chuvas de Junho, os rebeldes vagueiam pelas savanas e pelos caminhos de terra batida, os caçadores furtivos andam a fazer das suas. Por exemplo, na região da República Centro-Africana, onde estive na Sexta-feira, foram abatidos ilegalmente cerca de 800 elefantes em 2009. O marfim sai em direcção ao Sudão e daí entra na rota do Extremo Oriente, onde é transformado em objectos de decoração.

 

Camelos são exportados vivos em direcção à Líbia, ao Egipto e mesmo até à Jordânia. Vão pelo seu pé, em grandes manadas, numa altura do ano que é mais fresca, o que permite aos animais passar mais de duas semanas sem beber. Centenas de milhares de peles de vaca atravessam distâncias incalculáveis, em camiões que mal se mantêm sobre as suas rodas, trilhos de desolação sem fim, a caminho das fábricas da Nigéria, para serem transformados em couro. A goma arábica viaja para Norte, para as fábricas em França, ou para Leste, a caminho da Índia. É uma das fontes de rendimento dos camponeses pobres das terras secas.

 

As pessoas tentam ganhar a vida, sobreviver para além da miséria. Não é fácil, mas se houver paz e segurança, e respeito pelos direitos mais básicos da pessoa humana, a vida é possível. Há que criar essas condições mínimas e acreditar nas gentes destas paragens, de Sol forte, que queima mas que também dá cor vivas à esperança.

 

 

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