Este é o link para o texto que ontem publiquei no Diário de Notícias. É o último texto antes das férias. O próximo deverá ser publicado na edição de 1 de Setembro.
Cito, como é hábito, umas linhas da minha crónica: "Falando da Rússia, Vladimir Putin deve ter aprendido durante a reunião de S. Petersburgo que não é boa política amparar quem organiza golpes de Estado em África. A maioria dos dirigentes africanos não vê com bons olhos os golpistas. A Rússia, ao respaldar os jovens golpistas do Mali e do Burkina Faso, como já havia apoiado o golpe em Conakry em 2021, está a criar anticorpos nos outros países africanos. Putin parece ter percebido essa verdade: no Conselho de Segurança da ONU condenou de modo unânime o golpe no Níger. Mas essa compreensão é insuficiente enquanto continuar a ajuda russa a outros golpistas."
Eis, na íntegra, o texto que publiquei na Visão (revista impressa) de 8 de Maio, sobre a situação no Mali e as respostas da Europa e de outros:
Mali exemplar
Victor Ângelo
É um país fascinante, graças à sua geografia e cultura. Na encruzilhada dos caminhos que entrelaçam a África Negra e a mestiçagem do Sahel, a história moldou o Mali como um território de tradições ancestrais, de encontro de civilizações e de tolerância. Tombuctu, a cidade símbolo de um Islão humanista e culto, faz parte do património e do imaginário mundial. Mas, nas últimas décadas, a má governação, o colapso do Estado, a pobreza crónica e a desertificação progressiva empurraram uma boa parte dos melhores para a emigração e outros para uma mistura explosiva de miséria, medos, extremismos e criminalidade organizada. A polarização étnica passou a ser, para os que ficaram, o único ponto de ancoragem seguro. O país fragmentou-se. E, como se sabe, uma nação profundamente dividida caminha a passos largos para a catástrofe social e política.
A queda de Kadhafi contribui para que a catástrofe anunciada se tornasse real. O ditador de Trípoli oferecera emprego a muitos vindos do Mali e arredores, numa chamada “Legião Africana” e, mais tarde, como parte da sua guarda pretoriana. O fim do regime levou à debandada desses legionários, que regressaram às suas terras de origem, com armas e bagagens. Vários de entre eles eram Tuaregues do Norte do Mali. Em Março de 2012 ocuparam o território que consideram ancestral, sob a bandeira do Movimento Nacional para a Libertação de Azawad, e declaram-se “independentes”. Pouco a pouco, as facções ligadas aos grupos religiosos fanáticos foram ganhando o controlo. Em Janeiro deste ano, uma aliança de islamitas radicais e de Tuaregues aventureiros tentou penetrar na parte sul do país, uma zona étnica e culturalmente negro-africana, distinta da metade norte arabizada e mestiça. Foi o pisar de um risco de alerta, que levou, em meados de Janeiro, à intervenção francesa. E ao destacamento de tropas africanas, entre as quais, as mais efectivas de todo o Sahel, as do Chade.
Seguiu-se, duas semanas depois, uma conferência de doadores. Do dinheiro prometido apenas cerca de um quarto foi, para já, disponibilizado. Uma proporção significativa desses fundos deveria financiar a ajuda humanitária, indispensável para a sobrevivência dos deslocados internos e dos 180 000 refugiados em países vizinhos. As ONGs informam-nos, agora, que mais de 4 milhões de malianos estão à beira da penúria alimentar. Em breve, a 15 de Maio, haverá uma nova reunião de doadores, desta vez sob a égide da Comissão Europeia. Receio que sejam feitas novas promessas e que se continue a alimentar a ilusão que eleições presidenciais e legislativas são possíveis em Julho. Ora, as prioridades são claras: responder à urgência humanitária, promover a reconciliação e a unidade nacional, pôr a funcionar a administração civil e avançar com a reforma do sector da segurança. Sobre este último ponto, diga-se que a missão da UE no terreno, que deve apoiar a refundação das forças armadas do Mali, não pode fingir que vale a pena treinar soldados que não serão pagos. E que não possuem equipamento e logística, nem chefes à altura.
Entretanto o Conselho de Segurança da ONU acaba de aprovar o envio de uma força de paz para o Mali. Trata-se de 11 400 militares, mais 1 440 polícias e um milhar ou mais de funcionários civis. Parece-me, à primeira vista, um exagero. Sobretudo se se tiver presente que haverá, para mais, uma presença de tropas especiais francesas. E que os terroristas que restam serão, no máximo, umas centenas. Sem contar que a vocação dos capacetes azuis não é a de combater o terrorismo. Mas, quem aprendeu a manejar um martelo tem dificuldade em pensar noutros instrumentos. O caso do Mali lembra-nos isso!
Ao fim do dia, a Rádio Renascença telefonou-me, por causa de um programa que está a ser preparado sobre a situação na Guiné-Bissau. A verdade, respondi-lhes, é que não tenho acompanhado a evolução recente do caos em que se encontra esse país. A Guiné-Bissau saiu do mapa estratégico internacional. Mesmo do regional, pois na África Ocidental o que conta, neste momento, é o caso do Mali bem como a proliferação dos grupos ligados, de modo mais ou menos real, à al-Qaeda. Quem se interessa ainda pela Guiné? Quem está disposto a perder mais tempo com esse poço sem fundo?