Estou a fechar um capítulo muito longo da minha vida de caminhante pelo mundo. Esta noite dormirei rodeado de mais ou menos 220 caixotes e cartões de papelão. É como se o passado estivesse preocupado com a pena do meu adeus e quisesse, assim, mostrar-me que 42 anos de andanças precisam de muita embalagem.
Na realidade, tem sido uma final cheia de imprevisíveis. Qualquer plano, no meio de uma pandemia, é um baralho de cartas que mistura tudo, complexidade, incertezas e ansiedades. Sempre lidei com confusão, indecisão e riscos. Mas nada se compara com o que muitos de nós têm experimentado ao longo destes últimos meses. Sobretudo os mais frágeis e pobres. Dizem que a morte é a grande niveladora. Mas o confinamento é o grande revelador das enormes disparidades sociais e da diferença que elas fazem. Esta verdade não necessita de uma caixa de cartão. Irá, no entanto, comigo, nesta nova viagem.
Recentemente, quando me preparava para discursar, numa reunião pública, o membro da mesa encarregado de fazer a minha apresentação teve a amabilidade de dizer umas coisas simpáticas sobre a minha pessoa. Ao fazê-lo, colocou uma parte do acento na minha condição de “estrangeirado”, de quem anda lá por fora, tem uma família híbrida, meio portuguesa meio outra coisa.
Foi um momento curioso, já que a audiência era muito patriótica. Depois percebi que se tratava de uma espécie de alerta, para que não houvesse surpresas face ao que eu iria dizer. Como quem avisa, ele tem umas ideias diferentes, mas terão que compreender, anda há décadas lá fora.
Que ando, ando. Que vejo certas coisas com outros olhos, os leitores habituais sabem que é assim. Que não percebo a política portuguesa, também é verdade e, por isso, pouco escrevo sobre ela. Não compreendo a falta de ambição de quem nos dirige, nem a incompetência que manifestam, como também não entendo que perante tal, não haja uma oposição bem mais forte.
Mas isso são outras histórias.
Penso, no entanto, que é importante dar uma visão diferente da corrente. As mentes brilhantes que por aqui andam, na nossa praça pública, saltitam pela rama das coisas, alimentam-se da zombaria, defendem capelinhas em vez de ideias, movimentam-se em círculos de compadres. Prevalece o habitat dos pensadores narcisos. Aí, quem está fora há muitos anos, não cabe nem se sente no seu ambiente, essa não é a sua selva de predilecção.
O grande problema é que o país é a capital, e pouco mais, e a capital é apenas uma aldeia grande, em termos de mercado e diversidade. Acaba, assim, por ser um terreno de caça guardada para poucos, atentamente protegida pelos druidas ao serviço dos nossos pequenos deuses.
Por isso, convém alertar quando os estrangeirados se aproximam da cerca.