Passei a parte final da tarde a falar do passado. Três horas. Junto da Torre de Belém, que também nos lembra o que já fomos. É cansativo recordar quase cinco décadas de vida adulta. E de repente, alguém nos diz que esta conversa sobre factos e pessoas de ontem está muito entremeada com análises do presente e olhares sobre o futuro. Tinha que ser. Com a realidade tão complexa que temos pela frente, é impossível não ligar o que se aprendeu e viveu ao que poderá acontecer na era pós-covid. Com realismo, tanto quanto possível. Pensando no pior e na sua prevenção. É assim que se deve encarar o futuro, numa situação como a actual. Não se trata de pessimismo. Trata-se de procurar evitar o pior.
Depois, já em casa, soube que o Primeiro-Ministro da Austrália, Scott Morrison, prepara o seu país para que possa enfrentar um mundo, o de amanhã, que será “mais pobre, mais perigoso e mais desordenado”. Anunciou isso hoje. Poderemos não estar de acordo com as medidas que está a planear. Mas temos que reconhecer que as suas palavras nos fazem reflectir.
Estamos numa fase em que é preciso reinventar o optimismo. Essa é a grande tarefa que os líderes têm pela frente. Sem optimismo não há futuro. Na situação que vivemos, a arte é saber combinar as ideias positivas com a prudência que não podemos deixar de ter.
A minha neta nasceu há dez anos, feitos hoje. Em inícios do ano, quando pensava como me iria organizar para poder estar com ela, no seu dia de aniversário, disse a mim próprio que o mundo havia mudado imenso desde 2010. E mudou, de facto. Foi acima de tudo um período de revolução digital, de aceleramento da globalização e também de tomada de consciência do enorme impacto que temos na deterioração do meio ambiente.
Essas constatações tiveram lugar em Janeiro. Janeiro parece agora ter pertencido a um outro mundo, a um passado em que tudo era diferente. Os últimos dois ou três meses viraram tudo de pantanas. Estamos no meio de uma tormenta inacreditável e imprevisível. Muitos pensam que se trata de uma calamidade passageira, sem negar, no entanto, as suas dimensões plurais e gigantescas. Acreditam que em breve voltaremos à vida que vivíamos quando começou 2020. Outros, imaginam que o mundo depois desta pandemia não será certamente o mesmo. É difícil de saber quem tem razão. Mas é um facto que vamos sair desta calamidade mais pobres, mais fechados sobre nós mesmos e mais confusos sobre o que significa fazer parte da aldeia global. Também teremos perdido uma boa parte da arrogância que havíamos adquirido ao longo dos tempos recentes.
Não falei destas coisas com a minha neta, na celebração audiovisual que ocorreu esta tarde, com cada no seu canto e no ecrã dos outros. Mas apercebi-me que havia passado uma parte do dia com os seus amigos e amigas de escola, também de modo virtual. Organizaram jogos, falaram uns com os outros, mudando constantemente do francês para o inglês e vice versa. Estava um lindo dia de sol, que acrescentou alegria à vivacidade das crianças. Esta é geração dos dez anos em 2020, a crescer num círculo de raízes diversas, com pais vindos de várias partes da Europa e não só. Uma geração que irá certamente viver num mundo que nós, os bem mais velhos, não conseguimos imaginar. Mas, aos dez anos de vida, toda a esperança e optimismo são permitidos. E possíveis, claro. É tudo uma questão de tempo.
Hoje fechou a Rússia, por um mês. Cerca de um terço da população mundial está agora confinada. Uma situação destas deverá acarretar profundas alterações, em todos os domínios, uma vez terminada a crise. A reflexão sobre o mundo novo já está em curso, aqui e lá, cada um no seu canto e de modo muito incipiente. Os políticos prefeririam que tudo voltasse a ser como dantes, como em Janeiro de 2020. Seria como um simples despertar de um pesadelo horrível. Creio que não será assim. A maneira de trabalhar, a organização da economia, as viagens e o relacionamento com o longínquo, o pensar estratégico, as relações entre as pessoas, a atitude perante a natureza e o ambiente, as escalas de valores e o discurso social, tudo isso poderá conhecer transformações profundas. Penso que seria importante pôr um grupo de reflexão em marcha, com o objectivo de reflectir sobre essas possíveis alterações. Talvez isso pudesse ser uma iniciativa do Secretário-geral da ONU. Ou de uma fundação com The Elders.
A década em curso tem sido rica em acontecimentos com implicações políticas profundas. Tenho andado a tratar desses assuntos e a tentar perceber as várias dimensões do impacto que estão a ter e continuarão a exercer no futuro.
Amanhã falarei sobre isso, na Secção dos Assuntos Internacionais da Sociedade de Geografia.
Para já, deixo aqui a minha lista dos acontecimentos marcantes da década. Sei que o leitor poderá elaborar uma outra lista. Isso só enriquece o debate. Mas, de momento, fica a minha “fotografia” da década.
2011 – Crise na Líbia
2014 – Crise na Ucrânia e conflito com a Rússia
2015 – Imigração em massa para a EU
2015 – Atentados terroristas na Europa
2016 – Tentativa de golpe militar (talvez…) na Turquia
2017 – A presidência de Donald Trump
2017 – Consagração do poder absoluto de Xi Jinping e projecção na Nova Rota da Seda
2018 – Conflitos comerciais e movimentos anti-globalistas
2019 – Cidadãos pelo clima e o movimento de Greta Thunberg
2019 – Facebook anuncia o lançamento da Libra (28/06/2019) em parceria com 26 empresas e entidades
2019 – Ai-da, o robô artista, inaugura a sua primeira exposição de pintura e escultura em Oxford (Inteligência Artificial)
Tudo isto mostra uma aceleração de factos determinantes e assinala as mudanças que estão em curso.