Falando de golpes militares, não é correcto comparar os que aconteceram no Mali (2020), na Guiné-Conacri (2021) e no Burkina Faso (2022) com os de agora, no Níger e no Gabão. No essencial, os primeiros foram conduzidos por jovens oficiais que estavam insatisfeitos com a velha classe dirigente. A intenção, de um modo geral, era a de mudar o sistema de governação. Nos casos do Mali e do Burkina Faso, a dimensão “segurança interna” foi igualmente um factor importante. No Níger e no Gabão, tratou-se de procurar salvaguardar os interesses dos oficiais de patente mais elevada. Contrariamente aos “golpes dos capitães”, nestes dois últimos países estamos perante “golpes dos generais” e a continuação do regime, por outros meios e com gente fardada.
Quanto ao envolvimento russo, outro tema que é muito falado, nestes cinco casos apenas o Mali tem um acordo formal de defesa com os russos. Esse acordo tem sido, até agora, implementado pelos mercenários do Grupo Wagner. Não se sabe se este grupo continuará a intervir no Mali ou se será substituído por um outro.
Entretanto, os militares que governam o Mali decidiram pôr um termo à missão de paz da ONU, MINUSMA. Esta missão, que é enorme – cerca de 13 000 capacetes azuis e dois mil civis – deverá deixar o país até ao final do ano. Trata-se de uma tarefa enorme, quase impossível de realizar, tendo presente o tempo que resta. A decisão fará igualmente fechar várias embaixadas que estavam em Bamako em apoio à participação dos militares desses países na MINUSMA.
A Guiné-Conacri é um país de grande beleza natural. As terras altas da região do Fouta Djallon são de uma grandiosidade natural que deixa todos os visitantes deslumbrados. É nessa região que nascem alguns dos rios mais importantes da África Ocidental – o Rio Gâmbia, o Senegal e um dos principais afluentes do Rio Níger, para além de muitos outros.
O xadrez humano é também bastante diverso.
O país tem no seu subsolo vários minerais de grande valor, diamantes, ouro e vastíssimas reservas de bauxite. Mas continua a ser um país essencialmente agrícola, produzindo o que necessita para subsistir. Subsistência é a palavra exacta, porque a maioria dos seus habitantes vive numa situação de pobreza, ao nível da simples sobrevivência.
Quando trabalhei na Serra Leoa, país que partilha uma longa fronteira com a Guiné, ia frequentemente a Conacri e às localidades guineenses nas zonas fronteiriças. Tinha assim oportunidade de contactar as autoridades nacionais e locais e de perceber melhor os problemas de um país que uma longa experiência política marxista havia arruinado a economia e criado uma função pública enorme e pouco ou nada eficiente. As próprias forças armadas eram pouco mais que um exército de maltrapilhos.
Essa situação mudou muito a partir de 2010, com a chegada ao poder de Alpha Condé. A economia cresceu, formou-se uma elite de administradores civis e as forças armadas foram modernizadas. Alpha Condé deveria ter terminado o seu último mandato em Novembro de 2020. Por razões constitucionais e de idade (82 anos). Cometeu o erro de mudar a constituição, para poder continuar no poder. E, com a idade, passou a ter um estilo de governação do tipo microgestão, em que tudo tinha que passar por ele. Muitas vezes, nos últimos tempos, deslocava-se aos ministérios para ver se os ministros estavam de facto a trabalhar.
Foi hoje derrubado por um golpe militar. E sai de cena pela porta das traseiras, quando em 2020 poderia ter saído pela porta grande.
Temos novamente uma situação política anómala no Mali, com a detenção pelos militares do Presidente e do Primeiro-Ministro. Ambos haviam decidido, durante o fim-de-semana, proceder a uma remodelação do governo que entrara em funções após o golpe de Estado de Agosto. Ambos os golpes, o de então e de agora, foram organizados pelo mesmo grupo de oficiais.
Esta situação acaba por ter um impacto sobre a presença de várias missões – ONU e UE – no país. Deixa várias questões no ar. Quem não consegue entender-se, ao nível da direcção política nacional, não está preparado para tirar proveito da ajuda internacional. E quem decide, em Bruxelas, Paris, Nova Iorque ou noutras capitais, tem que se interrogar se vale a pena ajudar quem anda perdido numa grande confusão política.
Fevereiro começa, na cena internacional, com um golpe de estado em Myanmar. O partido de Aung San Suu Kyi havia ganho de modo esmagador as eleições legislativas de novembro passado. É verdade que as eleições não foram realizadas da melhor maneira, por causa da pandemia e das rebeliões armadas que persistem em várias regiões do país. Mas onde tiveram lugar de modo aceitável mostraram claramente que a senhora Suu Kyi goza de uma popularidade enorme junto das populações. Sobretudo quando se trata da etnia birmane, que é, de longe a mais numerosa.
Também é um facto que Aung San Suu Kyi pode ser criticada por várias razões, por acontecimentos e tomadas de posição que adoptou ao longo dos últimos cinco anos em que esteve no poder. Mas é fácil criticar a líder e esquecer as imensas e profundas contradições que existem no país. A sua liderança era, em grande parte, um exercício de equilíbrio. No fundo da cena, estavam sempre os generais e a máquina militar, que é poderosa. São estes que massacraram os Rohingyas e levaram à sua expulsão de Myanmar.
São também os militares quem controla algumas das principais fontes de riqueza em que se baseia a economia nacional. As forças armadas são uma estrutura que mistura organização militar, com interesses económicos e políticos. Em certas zonas do país, estão directamente ligadas à exploração ilegal de pedras preciosas e à facilitação da produção e do comércio de drogas. Têm, além disso, uma ligação estreita com as forças armadas da China, nas zonas fronteiriças com esse país, e com a Índia, igualmente nas fronteiras comuns. E é conhecida a cooperação militar entre Myanmar e Israel, quer em termos de formação quer na aquisição de armamentos.
Tenho seguido, há vários anos, por obrigação profissional, o que se passa em Myanmar. E acho fundamental que se condene de modo inequívoco o golpe de estado de hoje. O Conselho de Segurança da ONU discutirá a situação amanhã. Não creio, no entanto, que a China possa tomar uma posição muito clara. Um dos corredores económicos fundamentais da Nova Rota da Seda passa por Myanmar. O seu funcionamento dependerá da boa vontade dos militares golpistas.
O que se passa nos Estados Unidos é muito preocupante. Uma semana após o dia das eleições, Donald Trump e uma boa parte dos líderes Republicanos continuam a não aceitar os resultados eleitorais. Inventam toda uma séria de pretensos casos jurídicos, que sabem não ter mérito, mas que têm a vantagem de pôr em dúvida a credibilidade do processo eleitoral. Trump não quer ficar com a imagem de um presidente que perdeu as eleições. Isso esfrangalharia o seu ego imenso. Tem de basear os resultados em actos fraudulentos, que na verdade não existiram.
Agora resolveu, como qualquer golpista clássico, atacar a independência da estrutura militar. Demitiu quem estava à frente do Departamento da Defesa e que havia mostrado um certa independência de acção. Nomeou, para os lugares deixados vagos, gente que lhe é inteiramente dedicada. Alguns deles são racistas declarados e extremistas reconhecidos. Ao fazer o que está a fazer com a Defesa, Trump parece querer instrumentalizar as Forças Armadas, criar condições para as poder utilizar na defesa da sua usurpação do poder. Podemos ter aqui um enorme problema.