Sem dramatizar os acontecimentos de hoje em Bissau, é bom lembrar que a reforma das Forças Armadas da Guiné é uma prioridade absoluta. É preciso que a comunidade internacional dê o seu apoio ao governo do país para que possa ter a coragem suficiente para atacar essa questão. Legitimidade terá. Mas necessita de mais do que isso, ou seja, da determinação dos principais países amigos da Guiné, de modo coordenado.
Mas, quem toma a liderança desse processo, ao nível da comunidade internacional? Quem ousa dar o primeiro passo?
Estive na reunião do Grupo de Trabalho sobre África do Conselho da União Europeia. Falei sobre o Chade, a República Centro-Africana e o Sudão, bem como sobre as questões de segurança à volta do Lago Chade.
As outras matérias em análise incluíam a situação na Guiné, no dia em em que Capitão Dadis Camara, o actual dirigente, golpista e ditador, foi alvo de um atentado por parte de um dos seus assistentes militares. Está agora internado num hospital marroquino, enquanto a comunidade internacional continua sem saber como lidar com este país africano, rico em recursos, mas totalmente dominado por uma classe militar mal instruída, envelhecida, tribalizada e corrompida.
A estratégia comum entre a UE e a África, a República Democrática do Congo e as perturbações na zona do Sahel também estavam na agenda. As relações com a África Austral faziam igualmente parte dos debates, com o período pós-eleitoral em Moçambique a dividir os Europeus em dois campos: os que acham que as eleições não respeitaram alguns dos princípios básicos de um processo credível, e os outros, que pensam que foram aceitáveis.
As reuniões do Grupo de Trabalho são importantes. No entanto, a participação nas sessões é cada vez mais deixada nas mãos de diplomatas muito jovens. Como se a África fosse um assunto que tem que ser tratado, é verdade, mas sem merecer grande importância. Como se estivéssemos perante um ritual que exige ser cumprido, para não desagradar aos deuses da opinião pública --quem são? --, mas em relação ao qual não há um verdadeiro interesse.
Talvez seja por isso que a Europa continue a perder influência política e espaço económico nesse Continente.
Encontrei-me hoje com uma delegação militar do Nepal. Falámos dos 19 500 antigos guerrilheiros maoistas que esperam, em campos especiais, que o governo, que resultou do processo de paz, e que integra os líderes políticos maoistas, decida sobre a sua sorte. Serão desmobilizados? Ou serão, na sua grande maioria, integrados nas Forças Armadas? A verdade e' que os ramos militares já contam com mais de 90 000 soldados. Aumentar esse número, neste momento de reconstrução do país, parece ser uma má opção.
Entretanto, o Nepal tem vários batalhões sob a bandeira das Nações Unidas, a participar em missões de paz. No Haiti e no Congo. Na Libéria, igualmente, mas na fase de retirada. Mais. O governo prepara-se para enviar um batalhão, mais uma secção de Polícia Militar, para o Chade e uma companhia para o Darfur.
A participação em missões de paz e' uma maneira inteligente de manter as tropas motivadas, enquanto o processo político vai ganhando raízes, estabilidade e credibilidade. Mas, mais tarde ou mais cedo, vai ser necessário reduzir os efectivos. Aqui, como em muitos outros países, incluindo na Guiné.
Os membros da delegação ofereceram-me, no final, uma faca de combate de alto interesse artístico. Mas, na realidade, arte ou não, e' mais uma arma para matar.
A minha escrita desta semana na VISÃO e' sobre a reunião de Davos e a ligação entre o que se discute na estância suíça com os temas da cimeira anual da União Africana, que começará este fim-de-semana em Addis Abeba.
Enquanto em Davos a preocupação e' encontrar um novo modelo de crescimento económico, pós-crise, em África discutem-se golpes de estado, como o da Guine' Conacri. Ou, crises nacionais, como a da Somália, uma história de pavor sem fim. Ou ainda as fracturas da unidade nacional que se antevêem no Sudão, sobretudo agora, nas vésperas de uma decisão do Tribunal Penal Internacional sobre a constituição do Presidente Al-Bashir como arguido por crimes contra a humanidade.
Davos e Addis são terras de montanhas, mas cada uma vive num planeta 'a parte.
Ontem, foi dia de Suão, aqui conhecido como Harmatão, o vento seco e poeirento do deserto a cobrir a luz do Sol, com a internet a ir-se abaixo, como se tivesse medo das tempestades de areia. É o nosso Inverno / Inferno.
O plano de escrever sobre o desaparecimento de Lanzana Conté desfez-se na noite fresca do Sahel.
A verdade é que houvera seguido a vida política do falecido Presidente (absoluto) da Guiné-Conakry de perto, durante alguns anos, e havia uma ou duas histórias para contar. Senhor de um país rico, quer em recursos naturais quer em cabeças e capacidades humanas, para mim Conté foi toda a sua vida um Presidente-aldeão, mais do que um Presidente-soldado, uma etiqueta que alguns observadores gostavam de lhe colar. Lembro-me de se contar que um dia um dos ministros lhe trouxe as queixas dos habitantes de Conakry, por causa de não haver luz eléctrica na capital. O Presidente respondeu: " Mas eles vêm donde? Não é do mato? E no mato, há luz? ".
Um bicho-do-mato.
Foi o único Presidente que nunca respondeu a chamadas telefónicas que George W. Bush lhe fez, antes da invasão do Iraque. Nessa altura, a Guiné tinha assento no Conselho de Segurança. O Presidente americano telefonou um par de vezes, para tentar convencer Lanzana Conté a apoiar o projecto de resolução que havia sido apresentado. Nunca conseguiu falar com ele, nem a chamada teve qualquer tipo de resposta.
A sua longa passagem pelo poder levou muitos Africanos a dizer que o nome Guiné era um nome de países malfadado. Nenhuma das Guinés, a de Malabo, Bissau, ou de Conakry, consegue sair das crises profundas que as caracterizam, incluindo a Papua Nova Guiné.
Com o seu desaparecimento é mais um capítulo da velha geração de líderes desfasados dos tempos modernos que se fechou. Esperemos que a Guiné, que para além de tudo o mais, tem belezas naturais extraordinárias, consiga dar a volta às cliques militares e chamar a si muitos dos civis ilustres que aí nasceram e que entretanto se espalharam pelo mundo.