A União Europeia deveria transmitir ao Presidente da Turquia uma mensagem clara. A situação actual, nas fronteiras da UE, justificaria uma conversa firme com Recep Tayyip Erdogan.
Não seria necessário perder muitas palavras numa discussão sobre a crise em Idlib. Essa matéria deve ser tratada entre Erdogan e Putin. Está previsto, aliás, que esses dois compadres se encontrem, lá mais para o fim da semana, para falar de Idlib. Mas os europeus têm que lembrar ao Presidente turco o acordo que existe entre as partes, no que respeita à imigração em massa e aos refugiados. E deverão acrescentar que as pessoas em situação de desespero não podem ser utilizadas como peões num tabuleiro de jogos políticos.
Infelizmente, não vejo quem possa pegar no telefone para ter essa conversa com Erdogan. Charles Michel, o Presidente do Conselho Europeu? O seu estatuto faria dele o interlocutor mais adequado. Mas parece andar desaparecido, a resguardar-se talvez, para não apanhar o vírus que por aí anda. Ursula von der Leyen? Não a vejo com a autoridade necessária para o fazer. E não se pode pedir a um Chefe de Estado que o faça, sem ferir protocolos, e sem esquecer que a Croácia é o Estado que teoricamente ocupa este semestre a presidência da União. O líder croata não seria atendido por Erdogan, creio.
Entretanto o Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, resolveu convocar uma reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE. Não é má ideia, mas não chega.
A Turquia entendeu, nas últimas 24 horas, que se Vladimir Putin tiver que escolher, a decisão será a favor de Bachar al-Assad. Sem hesitações, quando o fundamental está em jogo, o Presidente russo apoia o lado sírio e deixa cair a aliança de conveniência que tem com Recep Tayyip Erdogan.
Como já o disse noutras ocasiões recentes, Assad e Putin acreditam numa solução militar. Por isso, prepararam planos e iniciaram, em Dezembro passado, uma ofensiva contra os vários grupos rebeldes que se refugiaram na única região possível, a província de Idlib. Essa campanha tem estado a ser executada progressivamente, sem dó nem piedade. Criou uma vasto movimento de deslocados – serão, nessa província, quase um milhão de pessoas em necessidade humanitária absoluta. Entretanto, Erdogan resolveu meter a colher na disputa. Esta é uma zona de fronteira com a Turquia. Não será a que tem maior interesse estratégico, mas é o refúgio de vários grupos armados próximos dos interesses de Ankara. Assim, Erdogan estabeleceu uma dúzia de posições militares turcas em Idlib, em território que não é dele. Foi uma dessas bases e a coluna de reabastecimento que foram alvo de ataques aéreos ontem. Atacaram os sírios e morreram mais de três dezenas de soldados turcos.
O Presidente turco aprendeu também, para lá da questão de saber para que lado penderia Putin, que o espaço aéreo nessa zona é controlado inteiramente pelos russos. Ora, tacticamente, isso acarreta uma fraqueza fatal. Os turcos não conseguem defender as suas tropas destacadas no terreno sem ter um mínimo de capacidade operacional aérea. Não a têm.
Erdogan pode contar com o apoio de um comunicado oficial e de uma conferência de imprensa da NATO. Conta, igualmente, com as “notícias” que a comunicação social turca favorável ao regime publica. Por exemplo, essa comunicação social “lançou” hoje dezenas de mísseis e “matou” mil e tal militares sírios, no que foi apresentado com um acto de retaliação do Presidente turco. “Notícias” assim são para consumo interno, mas não avançam a causa turca na Síria de um só milímetro.
Erdogan vai ter que retirar as suas tropas de Idlib. Não pode continuar a ter baixas e mais baixas. E prevejo que acabe por abrir as portas da sua fronteira aos deslocados sírios de Idlib. Com os novos refugiados irão também os combatentes rebeldes, alguns deles fundamentalistas. A multidão fará passar despercebidas essas fugas.
A questão aqui é a de saber se esses combatentes ficarão, depois, na Turquia ou se se dispersarão por outros países. A resposta mais provável é a da dispersão em direcção ao espaço europeu. Esta possibilidade aumenta o nível de risco de terrorismo na Europa.
Entretanto, hoje, a Rússia deslocou para a região duas fragatas com equipamento bélico capaz de dissuadir quem precisar de ser dissuadido. Ao controlo do ar junta-se a força marítima.
O Presidente Erdogan fica assim com uma ideia mais clara do tabuleiro de xadrez em que os russos se movem. Pode, igualmente, aproveitar esta oportunidade para perceber que a política que tem seguido leva ao isolamento do seu país, que é o contrário do resultado que ele ambicionava.
Bashar al-Assad aprendeu com os seus amigos russos que a solução é esmagar o adversário. Foi isso que aconteceu há anos, na Chechénia, uma república do Cáucaso que pertence à Federação Russa. É isso que está agora a ocorrer em Idlib, na fronteira da Síria com o Sudeste da Turquia.
Aprendeu também que uma vitória militar tem custos humanos terríveis, mas que isso é o preço a pagar. É uma atitude profundamente bárbara, que não se importa com o sofrimento das populações civis. Mas Assad é assim, não tem coração, tem armas, aliados e interesses a defender.
O sofrimento das populações de Idlib é imenso. Cerca de 900 000 pessoas estão deslocadas, a tentar fugir aos bombardeamentos de Assad e dos russos, mas não têm para onde ir. Estão encurraladas, à mercê do frio e da neve e à mão de semear dos ataques das tropas governamentais.
A ONU pediu uma trégua limitada, para poder dar ajuda humanitária aos deslocados. O Conselho de Segurança discutiu a questão hoje e não chegou a um acordo. A ofensiva militar vai continuar.
Para além do aspecto humanitário, existe igualmente um risco de confrontação entre as tropas de Assad e as de Erdogan. Já estivemos mais longe desse perigo.