A crise na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia tem várias dimensões. A mais imediata é de natureza humanitária, com milhares pessoas, incluindo crianças, a passar fome, frio e humilhações constantes. Algumas já morreram congeladas.
Mais ainda, não se sabe quantos milhares de pessoas estão encurraladas entre os guardas de um lado e do outro. Mas sabe-se que são tratadas com violência extrema por ambos os lados. E essa é uma questão central, que toca directamente no cerne dos valores europeus, do respeito pelas pessoas e da protecção dos mais frágeis.
Alexander Lukashenko está claramente a aproveitar-se da miséria de certos povos. Mas o nosso lado não pode ficar indiferente perante o sofrimento de quem se deixou manipular, gente que vive em contextos tão complicados que qualquer promessa, por mais ilusória que possa ser, traz sempre um fio de esperança.
Abrir as portas do espaço Schengen aos cidadãos de uma quinzena de países, como deverá ser decidido amanhã, é pouco. Não servirá para grande coisa, para além de mostrar que a crise irá continuar. O mundo não pode continuar fechado durante muito mais tempo. É fundamental aplicar outras medidas de prevenção, que não sejam o fecho das fronteiras e as quarentenas aplicáveis a todo e qualquer um. Testes expeditos, controlos de temperatura, seguimento dos casos suspeitos, promoção de comportamentos responsáveis, harmonização das políticas de saúde ao nível mundial, tem que haver maneira de encontrar um equilíbrio entre a pandemia e o funcionamento das relações internacionais, entre a prudência e a revitalização das economias. Cada dia que foge e que mantém a interdição de viajar para além da nossa vizinhança política é mais um passo para o abismo económico e social. O bloqueio sem esperança nem horizonte é um falhanço da comunidade internacional.
Hoje a Gare du Nord foi a de Bruxelas. Fui comprar a minha passagem para o aeroporto Charles de Gaulle. Volto no Domingo a África.
Há muito que não entrava nesta Gare. Foi uma surpresa. Numa das alas laterais, dei com um dormitório de gente sem abrigo. Contei 19 "camas", alinhadas lado a lado, bem encostadas à parede exterior da estação, numa área que embora esteja ao ar livre, está protegida por um tecto de cimento. Algumas, de gente certamente mais abastada, tinham um colchão. A maior parte, eram de cartão e trapos, que a vida de um sem-abrigo não dá para grandes luxos.
Vi todas as idades. Jovens e velhos, lado a lado. Alguns estrangeiros, de aspecto, pelo menos. Ao fim do dia, por volta das seis e pico da tarde, os moradores, ou já estão na cama, ou andam por ali perto, no espaço público da estação, a casa de todos. O tempo estava ameno, o que convidava um ou dois grupos a uma conversa mais desprendida, antes da hora do deitar. De que falam pessoas nestas condições?
Como se trata de um acesso lateral, penso que as autoridades fingem que não vêem. Os utentes habituais sabem, por sua vez, que é uma zona que é preciso evitar. A miséria, mesmo quando nos entra pelos olhos, com a habituação, torna-se invisível. Mas, sempre convém passar ao largo.
Comprei uma sandes. Enquanto a mordia, surgiu, de repente, do meu lado esquerdo, um jovem de pouco mais de vinte anos de idade. Delicadamente, pediu-me que lhe desse um pedaço. Olhei-o de frente e vi a fome com rosto de pessoa. Insistiu. Fiquei engasgado. Perdi o Norte. Afastei-me, ao acaso.
Portugal está coberto por um nevoeiro espesso. Como não dá para enxergar muito, a maioria dos políticos, dos jornalistas, dos juízes, dos funcionários das causas rotineiras, e outros, andam com as vistas curtas. É como na Escócia, onde o frio húmido e fechado faz aparecer fantasmas. No nosso caso, os fantasmas entram mesmo nas salas apagadas das comissões parlamentares. Instalam-se nas nossas casas, pelas televisões que nos tornam ainda mais rasteiros. Geram todo o tipo de medos e uma variedade de lendas.
Como tudo é muito irreal, a palavra mais frequente, nas bocas desses seres que a névoa cerrada torna cinzentos, é: Mentira! Sim, mentira! Passam o tempo a chamar-se mentirosos uns aos outros, por considerarem que só a sua versão da miragem é que deveria fazer fé.
Mas a verdade, para além das brumas fabricadas nas várias centrais conspirativas, é que há corrupção no ar. Abusos de poder. Arrogância. Falta de moral cívica. Ausência de sentido nacional. Desprezo pelos mais fracos, os anónimos da vida. E muita incompetência. A governação e a sociedade estão em crise. Estes são factos reais. Não são meras construções mentais, nem almas de um outro mundo. São problemas bem portugueses.
Um dia de Outono, em Lisboa, nestes 99 aniversários da República.
O cinzento do comentário maldoso foi da autoria do Chefe Primeiro, que espetou uma farpa azeda no homem de Belém, ao dizer que a tradição exige que se vá aos Paços do Concelho, quando se comemora a implantação.
Os políticos grandes têm grandeza de espírito. Os boxistas da política, por seu lado, tentam aproveitar todas as oportunidades para dar uns murros. O povo, por sua vez, confunde murros com agilidade e argúcia. Gosta do espectáculo da porrada. Apoia.
Estamos no mau tempo de uma maralhada pequenina. Ou, como diria o outro, há tempestade no Mar da Palha.
Durante a noite, viajei de N'Djaména para Paris. A título pessoal, por isso tinha um bilhete para a classe sardinha. Ao meu lado, sentou-se "un petit blanc". Um daqueles brancos que se perderam por África, quando aconteceu a descolonização. Sem qualificações, foram sempre arranjando emprego como capatazes ao Sol, apenas por serem brancos. São o último elo da cadeia, a mandar nas tarefas que apenas exigem mão-de-obra e supervisão, para que os trabalhadores não abusem.
O meu "petit blanc" regressava a casa, depois de trinta e tal anos perdido pelo mundo. Disse-me que tinha estado em todo o sítio que é África, e mencionou, para ilustrar, Martinica, Guadalupe, Polinésia, Guiana Francesa, etc, para além das Mauritânias e outros sítios que, esses sim, estão em África. Afinal, o que ele queria dizer é que tudo o que é Negro lhe é familiar. Uma maneira de ver.
Figura fraca de estatura, corroído pelo Sol, as mulheres dos trópicos e muito álcool. Tossia a má vida de vez em quando, as privações de quem anda aos caídos pelo mundo duro das terras que são agrestes e violentas, aquele som de quem tem os pulmões e alma à briga entre eles.
Estava, por outro lado, embriagado até à raiz dos cabelos. Ainda pensei exigir que o tirassem do avião, que não tinha condições para viajar e deixar os outros em paz. Falei com o chefe de cabine. Decidiu-se que iria continuar viagem, talvez a última de grande curso. Para não acrescentar mais miséria ao diabo da vida. Até porque a Air France tem um certo fraco pelos franceses...
Quando veio o jantar, o homem queria e gritava por um pastis, "un apéro", e vinho. Fiz ver ao pessoal de bordo que não seria aceitável responder afirmativamente. O "pequeno" ficou ainda mais podre e resmungou mais uma hora ou duas, até cair de cansaço, sobre si mesmo. Entretanto, cumprimentou-me, dizendo que nunca tinha tido, nas suas muitas viagens, um "abrutti" como eu como companheiro de voo.
Nas terras áridas, a água é uma questão de vida. A luz e as cores enchem a alma mas não matam a sede.
Água, coisa simples, não se pede muito mais.
A pobreza manifesta-se também na falta de acesso à água potável. É confrangedor ver as pessoas secas, mortas de sede, palitos vivos, pele e osso, que nem aos políticos interessam.