A Junta Militar, que se apoderou ilegalmente do poder em Myanmar em fevereiro do ano passado, executou hoje quatro activistas que haviam lutado pela democracia e os direitos humanos. Como muitos outros, haviam sido condenados à morte numa farsa de julgamento à porta fechada. A sua execução quebrou um período de mais de três décadas durante o qual nenhuma pena de morte fora efectivamente levada a acabo. O que agora aconteceu faz prever que outras execuções venham a acontecer nos próximos tempos.
A indignação dos povos de Myanmar e da comunidade internacional é imensa, tão vasta como o choque que a notícia provocou. Myanmar é um país multi-étnico e os seus cidadãos têm mostrado uma coragem exemplar em oposição ao golpe de estado. Mais de dois mil cidadãos perderam a vida, em manifestações de rua, que são sempre brutalmente reprimidas pelas forças armadas e de polícia do regime militar.
O regime militar está praticamente isolado, na cena regional e internacional. Mas é fortemente apoiado pelo Kremlin. Para além dos russos, existe uma significa presença chinesa, já que um dos corredores mais importantes da Nova Rota da Seda – pipelines e caminho de ferro – atravessa o país de alto a baixo. Tive há tempos a oportunidade de o visitar e de ouvir as queixas das populações, que foram expropriadas sem qualquer tipo de indemnização e à revelia dos direitos adquiridos ao longo de gerações. Aqui, mais uma vez, existe uma clara divisão de tarefas: os russos fornecem o apoio militar e os chineses tratam da economia.
Aung San Suu Kyi, a líder birmanesa que ganhou as eleições legislativas em finais do ano passado e que foi derrubada por um golpe de estado militar em Fevereiro deste ano, foi hoje condenada por um tribunal fantoche do seu país a 4 anos de prisão.
Depois de conhecida a sentença, os militares no poder reduziram-na de dois anos. Mas existem ainda várias outras acusações poderão significar, efectivamente, uma condenação perpétua. Suu Kyi tem agora 76 anos e, aparentemente, os generais querem que passe o resto da sua vida na prisão.
Esta condenação foi título de primeira página nos meios de comunicação social internacionais. Suu Kyi continua a atrair atenção dos defensores dos direitos humanos, para além de ser uma presença elegante e determinada na cena internacional. Por outro lado, é uma líder muito popular no seu país, um símbolo da liberdade contra a ditadura cruel dos militares. A única mancha no seu currículo político relaciona-se com a defesa que fez dos militares, quando estes resolveram expulsar as populações Rohingya do território nacional.
O que os meios de comunicação social não disseram é que a Junta Militar tem o apoio directo de Vladimir Putin. Enquanto os chineses se mantêm distantes em relação aos golpistas, a Rússia fornece ajuda militar e solidariedade diplomática. Essa é mais uma razão para dizer que Vladimir Putin não tem qualquer tipo de dificuldades em sustentar um regime ilegítimo, violento e corrupto. Um regime que é unanimemente condenado e ostracizado pelos países da região e também pela comunidade internacional.
Os cidadãos de Myanmar, sobretudo os mais jovens, continuam diariamente a dar-nos lições de coragem. Apesar das balas da polícia e dos militares, e das detenções em grande número, o povo está nas ruas das principais cidades, para dizer não à ditadura militar. As plataformas sociais desempenham um papel fundamental em matéria de informação e de mobilização. É, igualmente, através delas que o mundo sabe o que se está a passar no país.
Entretanto, na reunião do Quad de ontem – escrevi sobre essa reunião na minha coluna do Diário de Notícias – a condenação do golpe de Estado foi frouxa. A Índia e o Japão opuseram-se a uma condenação directa dos militares birmaneses. Foi mais um ponto fraco na grande diplomacia internacional. Assim se perde a credibilidade.
A situação em Myanmar piorou bastante nestes últimos dias. Agora, a polícia e os militares atiram a matar. E publicam vídeos nas plataformas sociais com ameaças de morte contra os manifestantes. Apesar disso, a população continua a vir para as ruas e a expressar a sua oposição ao golpe militar. A coragem que mostram é exemplar. Merecem todo o apoio que lhes possa ser dado. Por isso, sugiro que a União Europeia se reúna com os líderes da região (ASEAN) e procure saber qual é a sua opinião sobre as acções que os europeus poderão tomar, em concerto com esses países, para aumentar a pressão sobre os generais golpistas. Esta é uma oportunidade que temos de mostrar que não agimos sem consultar os países da região.
Singapura, que é o maior investidor estrangeiro em Myanmar, já disse claramente que o golpe é inaceitável. É uma posição clara e muito importante.
Entretanto, a China está a perder terreno em Myanmar. Uma grande parte dos manifestantes considera que Beijing apoia os militares. Essa percepção não ajuda em nada os interesses chineses. Anteriormente já havia bastante relutância em aceitar os colossais investimentos vindos da China. No futuro, a relutância passará a ser resistência. Uma das dimensões que está a resultar da presente situação é um enorme desenvolvimento do orgulho nacionalista birmanês. Ora, um dos alvos tradicionais do nacionalismo nesse país é a China.
Fico muito emocionado quando vejo as centenas de milhares de pessoas que se manifestam nas ruas de Myanmar contra a ditadura militar. E admiro a coragem das pessoas, gentes de todas as idades e de todas as condições sociais, das mais diversas etnias que compõem o complexo mosaico de nações que é Myanmar. Tenho acompanhado a história dos últimos dez anos, mais ou menos ano, e sei que os generais desse país não são gente para ter estados de alma. A tragédia que aconteceu aos rohingya, sobretudo a partir de 2017, mostra claramente a brutalidade e a disciplina de ferro que são os pilares das forças armadas do país. A comunidade internacional pouco pode contra eles. Mas é importante que continue, diariamente, a mostrar uma solidariedade inequívoca para com o povo birmanês. A presença maciça nas ruas têm feito recuar os generais. É fundamental que esse recuo não tenha tréguas.
Este é o link para o meu texto desta semana (de hoje) no Diário de Notícias.
Faço uma digressão por Myanmar para chegar à União Europeia e mostrar a minha preocupação com a confusão que instalou, um pouco por toda a parte, pelo facto das campanhas de vacinação estarem a progredir a passo de caracol. Ou de camaleão, já que se trata de política.
Se me meter em conversas em que se discutem temas que nos entristecem ou nos pintam uma sociedade à deriva, fico perdido. Estou a pensar nos temas da ineficiência, da manipulação da opinião pública, da corrupção, da ausência de punição para os criminosos com dinheiro e apoios políticos, dos compadrios, e agora – parece que está na moda – da formação de um governo de unidade nacional – não entendo bem o que isso quer dizer nem onde os seus proponentes querem chegar. Não sei o suficiente sobre o nosso quotidiano, depois de quarenta e dois anos de ausência, para me intrometer nesses debates. Mas reconheço a validade dessas questões. E a necessidade de as discutir de uma forma calibrada e sem manchas de clubite partidária.
Entretanto, ao fim do dia, tive duas boas notícias.
Uma, respeitante ao Conselho de Segurança da ONU, que aprovou uma declaração muito clara contra os militares golpistas em Myanmar. No essencial, é-lhes dito que isso de golpes é algo que não é aceitável no mundo de hoje. Foi uma declaração que me surpreendeu pela positiva. E digo isso no artigo que acabo de escrever para o Diário de Notícias de amanhã.
A outra foi o discurso de Joe Biden sobre política externa. Enunciou uma política clara, baseada na diplomacia com princípios e no respeito por todos os membros da comunidade internacional que se conduzam de modo democrático e que promovam os direitos humanos das suas populações. Ouvir o que ele disse fez-me perguntar a mim próprio se ele e Trump vivem no mesmo país. De um lado, temos uma atitude coerente e positiva. Do outro, era a política do imprevisto e do egoísmo nacionalista. A diferença entre um tipo de América e o outro é simplesmente colossal.
Fevereiro começa, na cena internacional, com um golpe de estado em Myanmar. O partido de Aung San Suu Kyi havia ganho de modo esmagador as eleições legislativas de novembro passado. É verdade que as eleições não foram realizadas da melhor maneira, por causa da pandemia e das rebeliões armadas que persistem em várias regiões do país. Mas onde tiveram lugar de modo aceitável mostraram claramente que a senhora Suu Kyi goza de uma popularidade enorme junto das populações. Sobretudo quando se trata da etnia birmane, que é, de longe a mais numerosa.
Também é um facto que Aung San Suu Kyi pode ser criticada por várias razões, por acontecimentos e tomadas de posição que adoptou ao longo dos últimos cinco anos em que esteve no poder. Mas é fácil criticar a líder e esquecer as imensas e profundas contradições que existem no país. A sua liderança era, em grande parte, um exercício de equilíbrio. No fundo da cena, estavam sempre os generais e a máquina militar, que é poderosa. São estes que massacraram os Rohingyas e levaram à sua expulsão de Myanmar.
São também os militares quem controla algumas das principais fontes de riqueza em que se baseia a economia nacional. As forças armadas são uma estrutura que mistura organização militar, com interesses económicos e políticos. Em certas zonas do país, estão directamente ligadas à exploração ilegal de pedras preciosas e à facilitação da produção e do comércio de drogas. Têm, além disso, uma ligação estreita com as forças armadas da China, nas zonas fronteiriças com esse país, e com a Índia, igualmente nas fronteiras comuns. E é conhecida a cooperação militar entre Myanmar e Israel, quer em termos de formação quer na aquisição de armamentos.
Tenho seguido, há vários anos, por obrigação profissional, o que se passa em Myanmar. E acho fundamental que se condene de modo inequívoco o golpe de estado de hoje. O Conselho de Segurança da ONU discutirá a situação amanhã. Não creio, no entanto, que a China possa tomar uma posição muito clara. Um dos corredores económicos fundamentais da Nova Rota da Seda passa por Myanmar. O seu funcionamento dependerá da boa vontade dos militares golpistas.
Os corredores económicos que a China está a construir através de Myanmar e do Paquistão são dois pilares da Nova Rota da Seda, a ambição gigantesca que o Presidente Xi Jinping formulou, após chegar ao poder em 2012. Gigantesca é aliás uma adjetivação insuficiente, minúscula mesmo, perante a enormidade e a complexidade dessa ambição. Mais ainda, a envergadura da Nova Rota da Seda tem causado ansiedades em muitos círculos de decisão geopolítica na Europa, América e Ásia, e explica uma boa parte do sentimento de desaprovação, de oposição mesmo, que agora existe em relação à China. Em política, como na vida, a ambição desmesurada acaba por ser uma fonte de grandes conflitos.
O corredor China-Myanmar é acima de tudo um investimento em pipelines – cerca de 800 quilómetros –, já concluídos e que tive a oportunidade de visitar há cerca de uma ano. Está neste momento a ser planeado um projeto complementar, que consiste na construção de uma ferrovia, que seguirá o percurso do oleoduto e do gasoduto desde a costa marítima birmanesa no Golfo de Bengala até Kunming, a capital da província chinesa de Yunnan. Estas infraestruturas destinam-se a facilitar as importações petrolíferas da China, evitando o longo e perigoso percurso através do Estreito de Malaca e pelo Mar do Sul da China. O petróleo e o gás virão do Médio Oriente e de África. A via-férrea fará parte da ligação, que continuará por via marítima, entre a China, Mombasa e Djibouti, dois portos de grande importância estratégica, quer como pontos de entrada em África quer como bases de apoio ao trânsito de mercadorias para a Europa. Djibouti oferece, igualmente, uma localização excecional para a proteção da navegação entre o Oriente e a Europa. Chineses, americanos, franceses, japoneses, indianos e outros, todos querem ter uma presença militar em Djibouti. A China é a única potência que combina nesse território defesa com infraestruturas económicas.
Voltando ao corredor que atravessa Myanmar, verifiquei que as grandes companhias chinesas de petróleo, gás e obras públicas têm luz verde dos militares birmaneses e do governo civil de Aung San Suu Kyi. Consideram, além disso, que cabe às autoridades de Myanmar tratar da sorte das comunidades afetadas pelos projetos. O problema é que ninguém explicou nada às populações nem prometeu qualquer indemnização pelas expropriações e demais perdas. O resultado, para já, como o constatei pessoalmente, é a hostilidade crescente das diferentes comunidades birmanesas contra os chineses. Mais tarde, a própria segurança dos projetos poderá estar em risco.
O corredor paquistanês é apresentado como o navio almirante no universo da Nova Rota da Seda. Começa na região chinesa de Xinjiang e termina no porto paquistanês de Gwadar, no Índico, muito perto da entrada do estratégico Golfo de Omã. Não visitei esse empreendimento faraónico – um investimento de 87 mil milhões de dólares americanos para financiar estradas, ferrovias, centrais elétricas e zonas económicas especiais. Mas vejo que a intenção é clara. A China ajuda o Paquistão a modernizar as infraestruturas de comunicações, de produção de energia, industriais e portuárias. Em troca, tem acesso direto ao Oceano Índico e a várias zonas francas, onde poderá contar com a mão-de-obra abundante e barata que o Paquistão tem disponível. Além disso, reforça o poder político e militar de um aliado fundamental na sua rivalidade crescente com a Índia. Sei que também aqui, como em Myanmar e noutros países de investimento chinês em larga escala, há o problema da adesão ou da hostilidade das populações. A China é vista como uma aliada do regime e o regime é tido como alheio aos interesses do povo. Temos de novo a fragilidade acima mencionada.
Há, no entanto, quem tenha consciência na China destas coisas e saiba que os acordos com regimes de legitimidade duvidosa têm pés de barro. Alguns centros de estudos já começaram a debater as questões do impacto dos megaprojetos nas comunidades afetadas, na Ásia e em África, bem como a desconexão que existe entre as lideranças políticas nos países anfitriões, que são favoráveis à penetração chinesa, e as populações, que consideram que os seus políticos são os principais beneficiários dos investimentos em causa. Tenho ficado surpreendido com a franqueza de certas intervenções dos académicos chineses. Uma China monolítica, sim, mas com alguma subtilidade de tons.
(Publicado no Diário de Notícias de 17 de outubro de 2020)