Para quem se interessa por questões internacionais, recomendo a leitura atenta do comunicado aprovado no final da cimeira do G20. É verdade que não menciona nominalmente a Rússia como Estado agressor. Mas reafirma os princípios da Carta das Nações Unidas, que a Rússia viola desde o início da sua guerra injusta contra a soberania e o povo da Ucrânia, e lembra que os vários países do G20 mantêm as posições que adoptaram quando das votações na ONU sobre a questão.
O comunicado identifica igualmente toda uma série de iniciativas e reformas que são necessárias ao nível global e insiste na importância da cooperação entre os países. No seu conjunto, é uma boa agenda de trabalhos.
O problema estará, como de costume, ao nível da execução. As palavras são bonitas, os compromissos assumidos são os apropriados, os líderes sabem o que deve ser feito, etc, mas com o tempo ver-se-á que se fica apenas pelas promessas. O nível de execução, quando existe, é muito baixo.
Este é o link para a minha crónica de hoje, publicada no Diário de Notícias. A não comparência do líder chinês parece mostrar que já entrámos na nova ordem política internacional.
Cito de seguida umas linhas do meu texto:
"Os dirigentes indianos varrem para debaixo do tapete essa ausência. Ao reagir assim e ao sublinhar que o primeiro-ministro chinês Li Qiang estará presente, estão a proceder da maneira que é diplomaticamente apropriada. Mas isso não esconde certas evidências fundamentais. As disputas fronteiriças e a concorrência geoestratégica entre ambos os países. As críticas de Beijing à aproximação cada vez maior entre Nova Delhi e Washington. E o facto de não haver acordo sobre o texto do comunicado final da reunião, no que respeita à agressão injustificada e sem-fim da Rússia contra a Ucrânia. A China não quer entrar nessa discussão, apesar de pretender ser o líder da nova ordem internacional. Ora, liderar é ser capaz de mostrar o caminho do futuro e não cair na prática que tem sido tão habitual na cena internacional, a dos dois pesos e das duas medidas."
Enquanto decorre a contraofensiva ucraniana contra os ocupantes russos, assistimos a uma intensificação das iniciativas diplomáticas em apoio à Ucrânia. Em Londres teve lugar uma conferência de doadores sobre a reconstrução do país, uma vez terminada a agressão. A União Europeia parece estar destinada a ser o maior financiador dessa fase. Entretanto, o Primeiro-ministro Narendra Modi esteve em Washington. E durante o fim de semana terá lugar uma iniciativa diplomática em Copenhaga, que reunirá os ocidentais com países do Sul, com base numa agenda que continua por revelar. No início da semana, Antony Blinken tinha discutido a questão ucraniana com a direcção chinesa.
Estas acções diplomáticas são importantes. A pressão da comunidade internacional conta muito. O próprio Secretário-geral tem um relatório pronto para ser divulgado, sobre os ataques russos contra escolas ucranianas. Esse relatório vai certamente colocar os russos na defensiva diplomática, tendo em conta que a questão das crianças é muito sensível. E toca directamente em Vladimir Putin.
E o 11º pacote de sanções contra a Rússia foi agora aprovado pelos países da UE, sem grandes divergências entre eles.
A comunidade internacional dá sinais de que considera que é altura de colocar um ponto final a este enredo e crime decidido por Putin. Putin pensava que a coisa se resolveria em poucos dias e por isso concentrou o seu esforço inicial em Kyiv. Errou. E a cobertura mediática da guerra tornou-a insuportável. Por isso, a pressão sobre ele está a crescer.
De Bruxelas a Beijing e Nova Deli, em tempo de atrocidades
Victor Ângelo
Na nossa parte do mundo, esta foi uma semana de viragem para pior. Estamos hoje numa situação bem mais delicada e perigosa. As atrocidades cometidas em Bucha, nos arredores de Kyiv, e noutras localidades, chocaram quem delas tomou conhecimento e prejudicaram gravemente a possibilidade de um diálogo entre os países ocidentais e o regime de Vladimir Putin. Agora, e sem se pronunciar a palavra que todos temem, poderemos estar numa confrontação decisiva entre os dois lados.
Um dos dois terá de ceder. Seria um engano não pensar assim. E, claro, o recuo não pode ser do nosso lado. Mas seria um erro ainda maior não agir de modo consequente. Isto quer dizer que as sanções precisam de entrar num novo patamar, que vise minar de modo determinante a capacidade económica e financeira do Kremlin. É fundamental ir mais além do carvão e deixar de importar todo o tipo de produtos petrolíferos. As estatísticas são claras: em 2021, a UE importou da Rússia 74 mil milhões de euros de petróleo e de produtos derivados do petróleo, enquanto as importações de gás natural somaram 16,3 mil milhões. Há quem na UE se oponha a esse tipo de sanções, dizendo que provocaria uma onda inflacionista e dificuldades insuportáveis para muitas das nossas empresas. Estudos credíveis mostram que tudo isso é gerível, tendo em conta o grau de sofisticação das nossas economias e os recursos que podem ser mobilizados. Mas, mais ainda, deve-se compreender que a obtenção da paz e a salvaguarda do futuro da Europa não podem ser obtidos sem alguns sacrifícios no curto prazo.
É igualmente essencial isolar ainda mais a Rússia. Foi essa a questão central das preocupações europeias, aquando da cimeira com a China, na passada sexta-feira. Durante a reunião, a mensagem pareceu cair em ouvidos moucos. Os dirigentes chineses insistiram na excelente cooperação que existe entre eles e Putin. Mas, nos dias seguintes, o discurso público em Beijing evoluiu. Passou a ser mais positivo em relação à Europa. Quem tem dinheiro, tem amigos, e os chineses sabem que a UE se transformou no seu maior parceiro comercial. Não podem perder o mercado europeu. O comércio entre ambos cresceu 27,5% em 2021, apesar das dificuldades ligadas à pandemia, ao aumento dos custos dos transportes marítimos, às interrupções nas cadeias de circulação de componentes e a um clima geopolítico desfavorável. Também não podem perder os investimentos vindos da Europa. Ursula von der Leyen e Charles Michel souberam fazer valer a carta dos investimentos. O acordo nessa matéria, aprovado em Bruxelas, em finais de 2020, tem estado congelado desde então, o que irrita a parte chinesa. Um maior afastamento da China em relação à Rússia poderá fazer avançar o descongelamento.
Para além da vertente mercantil, a China quer uma UE forte, na esperança de assim conseguir desamarrar, política e militarmente, a Europa dos EUA. Isso explica que seja construtiva na maneira como se refere à UE e, ao mesmo tempo, siga e amplie a retórica da Rússia, no que respeita à NATO. Independentemente dessa narrativa, o importante é fazer ver a Beijing que uma proximidade excessiva em relação a Putin joga contra os interesses a prazo da China. E não se trata dos interesses económicos apenas, por muito importantes que sejam as matérias-primas extraídas do vasto território russo. A deterioração da imagem internacional do ditador russo não pode ser ignorada por um país que ambiciona ser olhado como um dos polos da nova ordem global e um farol de paz.
No meio de tudo isto, seria um descuido grave esquecermo-nos da Índia. Narendra Modi investe num relacionamento próximo com a Rússia, para evitar que esta caia apenas para o lado chinês. A rivalidade com a China e a inimizade contra o Paquistão são os dois eixos principais da política externa indiana. Não quer, por isso, dar uma qualquer oportunidade à China de beneficiar de uma relação comparativamente mais privilegiada com a Rússia. A UE não pode descurar, nesta matéria, o diálogo com a Índia, franco e em paralelo com o que deverá continuar a manter com a China.
Ao ver e ouvir os analistas que hoje apareceram na comunicação social, cheguei à conclusão de que não têm lido o que tenho escrito sobre os interesses da China, no que respeita à Ucrânia, ao multilateralismo, bem como às relações com a União Europeia. Terei que voltar a escrever sobre esse assunto. Sobretudo agora, depois da abstenção da China no Conselho de Segurança da ONU, quando ontem se votou a proposta de resolução que “deplorava” a invasão da Ucrânia pela Rússia. Essa abstenção tem um significado imenso: a China não aprova a violação da lei Internacional agora praticada pela Rússia.
Os dirigentes chineses olham para estas coisas com um sentido estratégico muito apurado. O critério absoluto é o da estabilidade da política interna chinesa, ou seja, a manutenção da legitimidade política do Partido Comunista. O resto tem uma importância menos relevante.
Por falar na reunião do Conselho de Segurança de ontem, é interessante notar que a Índia se absteve igualmente. As relações diplomáticas e a coincidência de interesses entre a Índia e a Rússia são muito fortes. Nova Deli está, no entanto, numa posição difícil na medida em que precisa de reforçar as suas relações com os Estados Unidos e com a Europa. A posição ambígua que adotaram ficará registada nas diferentes capitais europeias e em Washington.
A decisão criminosa da Vladimir Putin está a envenenar relações internacionais, para além do sofrimento e da destruição que provoca ao corajoso povo ucraniano. Está igualmente a criar um crescendo de tensões entre a Rússia e os países do Ocidente europeu, o que me parece extraordinariamente perigoso. Só um tolo não vê a gravidade da situação. E a necessidade de se pensar de modo estratégico, de modo a evitar o pior cenário.
Este é link para a minha crónica de hoje no Diário de Notícias. Há um mês, a 7 de Maio, escrevera sobre o assunto, por ocasião da reunião preparatória dos ministros dos negócios estrangeiros (Inquietações: um G7 muito combativo).
O texto de hoje aborda outros aspectos, complementares ao que então escrevi. Um dos aspectos é uma análise da lista de Estados convidados, para além dos países membros do G7. Faço igualmente referência à complexidade de parcerias com a Índia. O ponto aqui é não cair na ilusão que a Índia pode ser um contrapeso à influência global da China. São duas realidades muito diferentes, apesar da semelhança em termos de população.
Cito de seguida, como de costume, um parágrafo do meu texto.
"Na Ásia, a grande aposta é agora a Índia. Por isso, andam todos com os olhos postos em Narendra Modi. É, no entanto, uma cartada complexa e pouco segura. Modi é um radical hindu, que está a arrastar a maior democracia do mundo para uma crise nacional intensa. É igualmente um proteccionista, pouco disposto a abrir a economia a estrangeiros. Oferece, no entanto, a grande vantagem de aparecer como uma possível alternativa de peso à China."
Os cidadãos de Myanmar, sobretudo os mais jovens, continuam diariamente a dar-nos lições de coragem. Apesar das balas da polícia e dos militares, e das detenções em grande número, o povo está nas ruas das principais cidades, para dizer não à ditadura militar. As plataformas sociais desempenham um papel fundamental em matéria de informação e de mobilização. É, igualmente, através delas que o mundo sabe o que se está a passar no país.
Entretanto, na reunião do Quad de ontem – escrevi sobre essa reunião na minha coluna do Diário de Notícias – a condenação do golpe de Estado foi frouxa. A Índia e o Japão opuseram-se a uma condenação directa dos militares birmaneses. Foi mais um ponto fraco na grande diplomacia internacional. Assim se perde a credibilidade.