A crise criada pela clique que controla o poder na Rússia põe em causa o futuro pacífico da Europa, para além da destruição que provoca no Ucrânia. Deveria ser resolvida com um tratado de paz abrangente, que englobasse todas as partes. Mas não vejo hipótese alguma de se conseguir um tal tratado. Deve, no entanto, repetir-se continuamente que essa seria a única solução razoável e respeitadora dos direitos soberanos da cada Estado.
Um armistício e um congelamento das hostilidades é inaceitável, por beneficiar o infractor. Não é impossível de obter, mas deixaria o problema por resolver e acabaria, mais tarde ou mais cedo, por dar lugar a uma nova agressão russa e a uma nova guerra. E abriria a possibilidade de outras agressões da Rússia contra a sua vizinhança ocidental, a começar nos países bálticos ou na Polónia. A Rússia ficaria sempre a ganhar e, por isso, não hesitaria, embora se tratasse de países da NATO. Procederia a um ataque rápido e de surpresa, e depois de ocupar algum território, sobretudo um corredor que lhe permitisse ligar a província de Kaliningrado à Bielorrússia e à própria Rússia, mostrar-se-ia pronta para assinar um acordo de tréguas.
É difícil de entender a razão que levou, na véspera da reunião do Conselho Europeu, Angela Merkel e Emmanuel Macron a sugerir a hipótese de uma cimeira entre a Europa e Vladimir Putin. A sugestão foi feita de modo inesperado, sem qualquer consulta com os outros líderes europeus. Contribui para novas divisões entre os europeus, com a Polónia e os Países Bálticos a dirigirem a oposição à proposta e a reforçar a sua posição de porta-vozes de Washington em Bruxelas.
O relacionamento com a Rússia é um assunto muito delicado. Exige muita coordenação entre os aliados europeus. É verdade que há muita matéria que precisa de ser discutida com Vladimir Putin. Mas também é um facto que este não está muito disposto a entendimentos sobre aquilo que é essencial para um melhor entendimento entre as partes.
No mesmo dia em que surgiu a ideia duma cimeira aconteceu um incidente militar grave no Mar Negro entre um navio britânico e as forças armadas russas. A embarcação britânica foi alvo de ameaças e forçada a alterar a sua rota, apesar de navegar num corredor que é reconhecido como internacional. Este incidente aconteceu na pior altura, no que respeita a Merkel e Macron.
Mas acredito que o assunto irá ser aprofundado e que os canais apropriados de consulta acabarão por ser seguidos. A questão é importante para ambos os lados. Mas é preciso encontrar as razões e os temas que levam as partes a um diálogo útil.
Transcrevo abaixo o texto que hoje publico na Visão impressa.
Boa leitura.
O póquer de Putine é uma distração perigosa
Victor Ângelo
Gostaria de resumir as semanas que acabo de passar em Riga com uma metáfora. Putine está a jogar póquer, forte e feio, e nós, no lado ocidental da Europa, achamos que se trata apenas de uma partida de bisca lambida. Neste jogo, cheio de incertezas, é preciso saber como lhe parar a mão. Foi essa a principal preocupação que encontrei nos países bálticos. Existe um novo receio em relação à Rússia, maior que no passado recente. A Estónia, a Letónia e a Lituânia sentem-se ameaçadas. Não apenas em virtude do que tem acontecido na Ucrânia. Os incidentes com a força aérea russa, nomeadamente as incursões no espaço báltico e os voos de caças com os sistemas de identificação desligados, têm sido frequentes este ano, como se Moscovo estivesse a testar a capacidade de reação do adversário. Para mais, sabe-se que Putine ordenou que fossem levados a cabo uma série de exercícios militares de envergadura e que multiplicou a capacidade combinada das suas forças, em regiões de fronteira com aquela nossa parte da Europa.
Ninguém tem uma bola de cristal que permita prever o futuro. À partida, nestas coisas, não se pode ser alarmista. Mas também não é bom andar a dormir na forma. Há que reconhecer que o paradigma das relações entre a UE e a Rússia precisa de ser revisto. A resposta à postura de Putine deve ser multidimensional. Tem que ser apropriada, clara e firme. Acima de tudo, prudente. A prudência passa por saber ver os riscos possíveis, preparar as medidas de contenção necessárias e não ter medo de agir.
Para começar, é importante recordar que a paz e a prosperidade de ambos os lados da Europa têm assentado e devem continuar alicerçadas no respeito pelas normas e os acordos internacionais e por relações económicas estáveis. A Rússia, que exporta anualmente mais de 100 mil milhões de euros de gás e petróleo para consumo na UE, está tão dependente de nós como nós estamos dela. Somos parceiros comerciais de monta. A interdependência económica deve ser acompanhada pela cooperação política. Há aqui um equilíbrio entre princípios e interesses que é mutuamente necessário e vantajoso.
Por outro lado, há que ter em conta que os países bálticos são membros da OTAN. Serão os estados mais expostos, pela sua proximidade geográfica, mas a sua defesa é fundamental, não só para os seus povos, como também para a credibilidade da Aliança Atlântica. Putine poderá pensar, como alguns dos seus conselheiros de geoestratégia imaginam, que em caso de intervenção russa numa área limitada dos bálticos, por um qualquer motivo, a OTAN ficaria paralisada por falta de consenso interno e acabaria por engolir uma situação do tipo da Crimeia. Poderia mesmo vir a desintegrar-se enquanto estrutura comum de defesa. Essa maneira de imaginar a resposta aliada parece-me irrealista. A recente visita de Obama a Tallinn serviu precisamente para mostrar que um passo agressivo, para além da linha de fronteira, provocaria, do lado da OTAN, uma resposta à medida.
Penso que ninguém de bom senso quer uma confrontação bélica no nordeste da Europa. Se isso viesse a acontecer, teria consequências imprevisíveis. Não há, nesta parte do mundo, possibilidade de circunscrever um conflito militar a uma pequena zona bem determinada. Qualquer choque armado levaria a uma catástrofe inimaginável.
Perante isto, o que se pede a todos os líderes, de Moscovo a Bruxelas, de um lado e do outro, passando por Washington, é que tenham juízo e coragem. Há outros desafios comuns bem mais importantes.
A Letónia vai a votos a 4 de outubro. Trata-se de eleger um novo parlamento. Existem quatro partidos com peso parlamentar e mais nove que também concorrem.
Curiosamente, estou em Riga há uma semana e ainda não vi um simples cartaz, para já não falar de manifestações públicas, levadas a cabo por qualquer um dos partidos. Ainda ontem dei a volta ao mercado central e para além das frutas, legumes, peixe e carnes, e muitas flores, nada de política. Quem não souber que as eleições estão à porta anda por aqui e não se dá conta que estamos a menos de três semanas do dia de votar.
Estranha maneira de fazer política.
Nas eleições anteriores, o partido mais votado –Harmonia, uma formação de centro-esquerda, se se pode falar de esquerda e de direita nesta terra – ganhou o maior número de votos. Mas como se trata de um partido “etnicamente russo”, como por aqui se diz, os outros, de extração letã, uniram-se para impedir que Harmonia viesse a formar governo. Veremos o que vai acontecer agora. Com a tensão que existe em relação à Rússia de Putine, uma vitória de Harmonia, se vier a acontecer, irá deixar, de novo, os outros partidos em transe.