As imagens que nos chegam dos chamados referendos organizados pelos ocupantes russos e os seus acólitos nas quatro regiões da Ucrânia mostram claramente que se trata de farsas, sem qualquer valor legal nem democrático. Os objectivos de Vladimir Putin são pelo menos três: poder destacar para essas regiões os reservistas agora recrutados à força; aumentar a cartada quando um dia as negociações de paz tiverem lugar; intimidar os países ocidentais, para que deixem de fornecer armas às forças armadas ucranianas. Tudo o que Putin faz tem sempre várias dimensões. Não pode ser visto com olhos de amador.
Existem razões políticas suficientes para justificar a realização de um segundo referendo sobre o Brexit. Se acontecesse, o resultado desta nova votação poderia aparecer como uma confirmação da maioria obtida em 2016, ou ir no sentido oposto. Seria, em qualquer dos casos, um referendo com base numa melhor compreensão do que está em jogo.
Poderá vir a acontecer.
Penso, no entanto, que os dirigentes europeus não devem ficar à espera por muito tempo que os britânicos decidam se realizam ou não uma nova consulta popular. Por isso, defendo que se deve dar um prazo definitivo aos políticos que estão no governo de Theresa May e no Parlamento de Westminster. Uma data final e nada mais.
A participação britânica nas eleições europeias de finais de Maio é uma aberração política. Estou hoje convencido que a Primeira Ministra e o Líder da Oposição, Jeremy Corbyn, se apercebem desse absurdo e dos custos políticos que daí decorrem. Assim, acredito que estão cientes que as discussões entre eles têm que chegar a uma conclusão em breve, não muito depois da Páscoa.
Os líderes europeus decidirão, dentro de horas, que resposta dar ao pedido de Theresa May, que solicitou um breve adiamento da data de saída do seu país da União Europeia. O pedido formal da Primeira Ministra propõe 30 de Junho como o novo prazo para o Brexit.
Reconheço, como muitos outros, que esta é uma questão profundamente complexa. Aconselho, no entanto, que não se complique ainda mais o que já está desesperadamente enrolado.
Também, para evitar novas acusações de humilhação, os líderes deveriam aceitar a proposta britânica. É verdade que a Primeira Ministra está numa situação de grande fraqueza política. Não aceitar o seu pedido aumentará a sua fragilidade.
Uma extensão longa – que tem muitas hipóteses de ser a resposta que a noite irá dar –, e flexível, não me parece ser a mais acertada. Multiplica de modo significativo os riscos de instabilidade, do lado da UE. Só deveria ser aceite se do lado britânico houvesse abertura para um novo referendo.
Os mercados bolsistas europeus parecem não ter ligado ao resultado do referendo italiano. O índice Euro Stoxx 50, que é indicativo do que se passa nas principais praças europeias, subiu 1,25%. O principal índice francês, o CAC 40, aumentou 1,00%. E assim sucessivamente. Apenas o FTSE MIB, que reflecte a bolsa italiana, teve uma quebra insignificante de 0,21%. O euro também aumentou de valor: mais 0,88% em relação ao dólar dos EUA.
A explicação é simples: quem anda pelas bolsas sabia – há meses – que Matteo Renzi não tinha hipóteses de ganhar esta consulta popular. Por isso, as acções italianas foram-se desvalorizando ao longo dos meses. Perderam 20% do seu valor desde o início do ano. Quanto aos bancos, onde as fragilidades são maiores, a perda média do valor das acções bancárias anda nos 48%, em relação a Janeiro de 2016.
Muitas das acções dos bancos estão na posse dos particulares, dos cidadãos que acreditaram na conversa ouvida aos balcões das agências e que foram convencidos a comprar esses títulos. Mais ainda. Existem mais de 170 mil milhões de euros, a título de obrigações bancárias, nas mãos das famílias. Também aí haverá que prever perdas de valor muito significativas.
Em resumo, como foi dito hoje por alguém importante à entrada de uma reunião em Bruxelas, não há receios. Os italianos saberão como resolver estes problemas.
Ficarão, acrescento eu, mais pobres e muito mais fartos das elites políticas e financeiras. O referendo já mostrou essa tendência. E a trajectória parece levar a Beppe Grillo e à chegada ao poder do Movimento 5 Estrelas. Ou seja, a elite da desgraça será substituída pela malta da confusão.
A campanha à volta do referendo tem sido muito dura e extrema. Era de esperar que assim fosse. Um referendo divide o eleitorado entre o Sim e o Não, sem as matizes e as hesitações que se encontram nas eleições partidárias. Por outro lado, um dos partidos mais visíveis na campanha para o referendo é o UKIP – UK Independence Party –, um partido xenófobo radical. Tem sido uma voz forte na campanha. As divisões dentro do Partido Conservador também levaram a um exagero de posições, já que cada lado procurou dramatizar o que estava em causa.
O assassinato de Jo Cox exemplificou, de modo trágico, a violência verbal a que temos assistido. Mas não pode ser visto como uma falha da cultura política britânica. O que é na verdade uma derrapagem da cultura política do Reino Unido é a xenofobia, o ataque contra os direitos dos imigrantes, o menosprezar de outros europeus, sobretudo os provenientes de países mais pobres.
Os resultados do referendo poderão de algum modo ser influenciados pelo homicídio de Jo Cox por um tresloucado apoiante do Brexit. Mas não sei se isso será suficiente para inverter a tendência que dá a vitória aos que querem a Grã-Bretanha fora da UE. Também não sei se as sondagens estão correctas. As casas de apostas pensam que as sondagens não estão a reflectir o que possa vir a acontecer.
Economia
Os argumentos económicos começam agora a ter um pouco mais peso, a merecer mais atenção por parte do eleitorado.
Cerca de 50% das exportações britânicas vão para a UE.
Cerca de 7% das exportações da UE vão para o Reino Unido.
Para o RU, o comércio com a UE representa 3 vezes o que é feito com os EUA, 9 vezes o que tem lugar com a China, 42 vezes mais do que o comércio com a Austrália.
Libra pode desvalorizar 15% em relação ao USD.
As bolsas já estão a perder valor, mesmo antes do referendo.
Frankfurt e Luxemburgo poderão ganhar mais relevo enquanto centros financeiros. Mas não vai ser de imediato. Estas coisas, que são altamente especializadas, levam tempo a ser transferidas. Seria, se acontecesse, uma transferência progressiva, que demoraria três a cinco anos, pelo menos.
Não creio que haja vontade política, na EU, para dificultar, para tornar mais complicada as actividades de Londres nos mercados financeiros europeus. A preferência é a de não mudar radicalmente o sistema financeiro tal como tem existido até agora.
É provável, no entanto, que as exportações britânicas para a Europa sejam penalizadas com novas taxas.
Impacto político
Na Holanda, na Dinamarca, certamente, que poderão pensar em organizar os seus próprios referendos.
No reforço dos movimentos populistas, nomeadamente em França, na Alemanha, na Hungria e na Polónia.
No entanto, uma vitória do Brexit não será o início do fim.
Numa entrevista ao Financial Times, publicada na quarta-feira, Donald Tusk partilha o seu receio de que outros políticos europeus possam imitar David Cameron e organizar, também eles, referendos nacionais sobre a continuação ou não dos seus países na UE. O Presidente do Conselho Europeu acrescenta mesmo que tem ouvido uns zunzuns sobre essa possibilidade.
Se se tiver presente o clima de populismo que se vive actualmente na Europa, esse risco existe de facto. A França de Marine Le Pen poderia ser a primeira da lista. Mas, mesmo sem Le Pen e outro similares no poder, a coisa poderia acontecer. Bastaria que alguns cidadãos, no país A, B ou C, conseguissem reunir uns bons milhares de assinaturas numa petição pública. A partir daí o processo político entraria numa espiral difícil de conter.
Mesmo prevendo a derrota, caso a caso, das opiniões contrárias à continuação na UE, cada referendo traria um novo ciclo de incertezas e teria um enorme impacto nos investimentos, na competitividade e na credibilidade do projecto europeu.
Infelizmente, estamos numa época em que nada pode ser excluído. O absurdo está a ganhar, em vários sítios, direito de soberania.
Publico na Visão que hoje chegou às bancas o texto que abaixo transcrevo.
Boa leitura.
Retirar Tsipras da fotografia
Victor Ângelo
No chamado “coração da Europa” – Alemanha, França e Benelux, em particular – cerca de três em cada quatro cidadãos consideram que a ajuda concedida até agora à Grécia foi generosa. Também acham que não deve ser renovada, salvo se houver um compromisso forte e inequívoco em matéria de reforma do Estado e das finanças públicas. Simultaneamente, cerca de 60% desses mesmos eleitores preferiria que a Grécia se mantivesse na zona euro, para evitar uma crise de proporções imprevisíveis. Estes números são estimativas. Resultam de análises feitas em gabinetes opacos. Valem o que valem, como muitas das notas confidenciais que os serviços desse tipo produzem. Mas são as que circulam nos círculos políticos que têm de facto poder de decisão. Ajudam a compreender certas tomadas de posição. E lembram-nos, uma vez mais, que em política o que pesa de verdade é a opinião pública interna.
Os mesmos analistas foram chamados a refletir sobre as opções que a Grécia teria, se procurasse ajuda fora da UE. A possibilidade mais óbvia parecia ser a russa. A Grécia poderia solicitar assim o apoio político e financeiro de Putin. A conclusão a que se chegou é que se trata de um beco sem saída. A carta russa não vale no baralho que ainda resta a Atenas, um baralho hoje quase sem trunfos. Primeiro, a dimensão do problema é tal que está fora das possibilidades financeiras de Moscovo. Segundo, à Rússia interessa minar a união da Europa no centro e não na periferia. Terceiro, uma aproximação desse tipo acarretaria o afastamento da Grécia dos núcleos de decisão estratégica da Aliança Atlântica. Ora a presença na NATO é vital para os seus interesses de soberania. Não seria concebível, em Atenas, estar do lado de fora, enquanto a Turquia, o rival por excelência, continuaria dentro da Aliança. Sem contar com a possível oposição das forças armadas gregas a uma decisão política que pusesse em causa a sua inserção plena na NATO.
O primeiro-ministro Alexis Tsipras resolveu então jogar a carta do referendo. Foi uma decisão de desespero. Também um golpe fatal no relacionamento pessoal com os seus pares europeus. Estas são as apreciações que prevalecem em Bruxelas, do outro lado da mesa. A resposta parece ser clara. Se o campo do “não ao acordo” ganhar, Juncker e os outros tomam nota e passam à fase seguinte, que é a de consolidar a estabilidade financeira dos restantes membros da zona euro. Existe a convicção que será possível gerir os riscos decorrentes do “Não”. Porém, os chefes da Europa farão tudo o que estiver ao seu alcance, a tordo e a direito, para que seja o “Sim” a vencer. Para eles, o objetivo político principal mudou com a convocação do referendo. Trata-se, a partir deste momento, de criar as condições internas que precipitem o fim da coligação de governo grega.
E isto leva-me a um último ponto. A crise permitiu tornar clara a ideologia que sustenta o projeto europeu. Pouco a pouco, a Europa foi sendo formatada para ser governada ao centro. É uma construção neoconservadora, inspirada por opções políticas que assentam num liberalismo económico e cultural com fortes laivos sociais. Umas vezes o acento será mais no liberalismo, outras nas dimensões sociais, mas tudo dentro de um quadro ideológico que não ponha em causa o sistema. É agora evidente que o governo do Syriza ou arranjos semelhantes, noutros cantos da UE, não cabem neste quadro. Essa é a mensagem que se quer fazer chegar aos eleitores europeus.
Há 15 dias escrevi na Visão que o voto pela independência da Escócia seria um erro, por várias razões, incluindo por constituir um encorajamento aos diversos populismos e nacionalismos bacocos e retrógrados que estão a aparecer em vários cantos da Europa. Previ, nessa altura, que o “não” ganharia de maneira clara e sem apelo. Alguns amigos meus pensaram então que a minha opinião era pouco prudente, pois o “sim” parecia estar de vento em popa. Acharam mesmo que eu me arriscava a perder alguma credibilidade em matéria de análise de política internacional.
O resultado do referendo, hoje conhecido, traduziu-se numa estrondosa vitória dos que se opõem à independência. A minha previsão bateu certa. E as ambições dos que querem fragmentar ainda mais uma Europa que precisa de estar unida sofreram uma derrota bem significativa.
Agora, como escrevi na altura, vai surgir o verdadeiro problema para a Grã-Bretanha: o que fazer em relação à União Europeia. Essa é a questão em cima da mesa. Essa é a questão existencial. Cameron não estará à altura de a resolver. Como também não esteve à altura do desafio escocês. Se não fosse a ajuda dos Trabalhistas, em particular de Gordon Brown, Cameron teria sido confrontado com enormes dificuldades perante a consulta popular escocesa.
Um número importante de ingleses irá votar, se houver um referendo sobre a Europa, contra a União. Com a Escócia dentro do Reino Unido, uma parte dos votos contra a Europa será anulada por votos a favor da Europa, vindos do lado escocês. Mas isso não será suficiente.
E, infelizmente, não creio que os Trabalhistas de Ed Miliband consigam chegar ao poder antes do referendo.
A satisfação de hoje não nos pode fazer esquecer os problemas que se avizinham. E os riscos que um primeiro-ministro fraco acarreta.
Transcrevo o texto que hoje publico na revista Visão.
Fragilidades britânicas
Victor Ângelo
Num almoço recente, em que se discutia o referendo sobre a independência da Escócia, Mark, coronel do exército de Sua Majestade, contou-nos a sua experiência pessoal. Casado há muito com uma escocesa proveniente de um dos clãs das terras altas do norte do país, disse-nos que a família da mulher continua a olhar para ele com desconfiança e a tratá-lo de maneira distante. A razão é clara: Mark é inglês. Na Escócia profunda continua a existir uma gama de preconceitos negativos contra todos os que vêm do lado sul da velha fronteira, ou seja, os ingleses. É aí, nas águas turvas do pântano identitário e das ideias feitas, dos simplismos, que Alex Salmond, o líder do governo escocês e campeão do movimento independentista, vai à pesca de votos. O resto está resolvido. A devolução e a descentralização do poder constam do quadro constitucional vigente, que já concede autonomia total à Escócia em matérias tão importantes como as relativas à produção das suas próprias leis, à educação, saúde, finanças e organização política interna. Até a Igreja da Escócia é independente da Igreja da Inglaterra!
Salmond, como outros populistas noutros cantos da Europa, sabe que os sentimentos nacionalistas estão a dar votos. Deita então mais achas para a fogueira ao acenar com miragens de maior riqueza – os recursos do petróleo do Mar do Norte ficariam então na Escócia livre – e de uma sociedade a funcionar melhor, uma vez liberta do peso dos pobres, que seriam contidos do outro lado da fronteira. Fica, no entanto, calado quando lhe dizem que a independência traria um impasse infindável, no que respeita à integração na UE. A Espanha opor-se-ia, com unhas e dentes, à candidatura de adesão que pudesse resultar de um voto favorável à independência a 18 de setembro. O mesmo aconteceria com a Itália, a França e outros, para não estar a mencionar o governo de Londres. Convém acrescentar que mesmo um processo de associação à moda da Noruega parece inaceitável para certos estados membros.
Os nacionalismos arrebatados – incluindo em Portugal, com toda a retórica extremista que por aí anda sobre as vantagens que teríamos se viéssemos a sair da moeda única – têm sido a desgraça da Europa, ao longo dos tempos. Agora são, acima de tudo, uma distração política potencialmente perigosa, que desvia as atenções dos verdadeiros problemas: o impacto da globalização nas economias e no emprego europeus, o relacionamento com a Rússia e com as margens sul e oriental do Mediterrâneo, a radicalização de cariz religioso e cultural em certos países da UE, a precariedade social crescente, sem esquecer a complexa crise política que agora está a minar, muito a sério, o processo de construção europeia.
A Escócia irá provavelmente votar contra o absurdo que Salmond representa. Oxalá! Mesmo que isso não venha a retirar muito vento às velas independentistas da Catalunha – e a Catalunha é um problema bem mais sério, capaz de abalar a estabilidade política e económica de Espanha, o que também acabaria por ter um enorme impacto em Portugal – permitirá esfriar alguns entusiasmos separatistas noutras partes da Europa. E ajudar a Grã-Bretanha a concentrar-se na questão que de facto vai condicionar o seu futuro: a relação com a UE. É aí que a porca torce o rabo. Se a opinião pública britânica se virar contra a Europa – esse risco é cada vez maior – as consequências serão enormes. A possibilidade da deriva britânica passa mais por Londres e Bruxelas que por Edimburgo.