Último dia em Riga. Ontem tinha um convite para visitar o museu do KGB, que está instalado no local onde a polícia política soviética prendia os dissidentes e os interrogava, com a violência que se imagina.
Decidi não ir. Estava com pouca vontade de passar uma hora e tal a ver coisas deprimentes e de ouvir histórias pessoais de quem por lá passou, noutros tempos, ou contadas pelos familiares que sobreviveram. Todos sabemos o que foi o KGB e não existem dúvidas sobre os métodos que utilizava.
A Letónia de que gosto é a que olha para a frente, de maneira disciplinada e elegante, a que procura criar uma economia moderna na Europa a que pertence. A Letónia dos parques, das flores, do bom gosto e da modernidade. E que consegue ultrapassar o passado e viver em harmonia com a sua minoria russa e com as memórias.
Depois, ao fim do dia, estive numa discussão formal sobre as relações com a Rússia actual. E, também aí, o que conta é o futuro, uma boa compreensão dos objectivos essenciais de cada parte, e não os fantasmas de outros tempos.
Esta é a altura do ano em que os compromissos me trazem a Riga. Assim acontece, de há cinco anos para cá. E para quem vem de Lisboa, Riga é uma lufada de tranquilidade, de parques e flores, de beleza urbana e de gente com maneiras. A cidade funciona bem, os prédios, muitos deles do estilo Art Nouveau, estão bem tratados – tem havido muito trabalho de renovação nos últimos anos – o mercado central é um prazer para os olhos e uma oportunidade de apreciar o custo de vida – que continua muito mais em conta do que em Lisboa.
Este ano, com a história das sanções, os Russos fizeram de Riga um destino menos frequentado. Foi uma vingançazinha do lado do Vladimir. Em resposta às restrições europeias, o homem do Kremlin e os seus amigos aconselharam os russos a ir a banhos aqui ao lado, no enclave que a Rússia tem no Báltico e cuja capital é Kaliningrado. Até um festival anual de música, que tinha lugar nos arredores de Riga foi este ano mudado para o enclave russo.
Para quem quer ir para o centro da cidade, o preço é fixo – 15 Euros, para uma distância de cerca de 10 quilómetros – e paga-se num balcão na área das chegadas. O táxi está imediatamente disponível, limpo, com a internet sem fios gratuita e rápida. O rádio permanece desligado. O motorista veste-se com rigor e tem uma excelente apresentação. Não abre a boca, a não ser para responder a alguma pergunta que lhe seja feita. Durante o percurso, nunca ultrapassou os limites de velocidade nem nada que se parecesse com uma manobra perigosa. E em poucos minutos estávamos no centro de Riga.
No mercado central de Riga, as espinhas de salmão fresco estavam hoje a € 0,60 por quilograma. Os restos da barriga do peixe, o que sobra quando os filetes são preparados, custavam € 0,70 por cada quilo. Cortados com arte, esses restos tinham uma excelente apresentação. Na sopa dos reformados – esta categoria de cidadãos constitui uma boa parte da clientela do mercado – a apresentação também conta.
Do outro lado, do lado da carne, o mais barato eram os nacos enormes de toucinho, pura gordura de porco cortada a preceito: 0,70 euros por quilo.
Ver e contar estas coisas dá-nos outro ângulo.
Mais. Devo acrescentar que tudo se passa com muita elegância e saber estar nos espaços colectivos, na rua e na praça, que a última coisa que uma pessoa deve perder é a dignidade, o respeito, a começar pelo respeito por si própria. Quem viu coisas bem piores, a ocupação nazi, os tempos estalinistas, as deportações, a repressão violenta da cultura e da língua letãs, os invernos gelados, a repressão feroz, sabe que as espinhas de peixe têm um valor relativo.
Este é quarto mês de setembro que me apanha em Riga. Desta vez, os factos que se vivem na região levam-nos a um tipo de preocupações diferentes: como ultrapassar a confrontação actual e voltar a um relacionamento nesta parte da Europa que tenha em conta os velhos princípios da Acta Final de Helsínquia de 1975 – sim de há quase quarenta anos – sobre a cooperação e a segurança na Europa. A Europa dos conflitos e do poder do mais forte é algo que não deveria ter futuro no nosso continente. Quem pense o contrário está fora do seu tempo, raciocina como um agressor e deve ser clara e firmemente denunciado. Mas a denúncia não pode ser feita de modo a fechar as portas. Deve ser argumentada com serenidade e acompanhada de um convite ao diálogo.
É verdade que em política, na interna e na externa, dá mais votos bater no adversário. O contrário não anima as hostes, não dá entretenimento e deixa a impressão de frouxidão. A política, em muitos aspectos, continua a ser, acima de tudo, um espectáculo para as massas.
Tornou-se um ritual. No segundo Sábado de cada uma das minhas estadas em Riga deambulo pelo mercado central da cidade. É um prazer. Tudo limpo e arrumado, e ao mesmo tempo diferente do que é hábito na Europa em que vivo o resto do ano. Para além de uma enorme variedade de bagas, colhidas nas florestas bálticas e próprias do Norte da Europa, muita da fruta vem da Turquia e do Uzbequistão, alguma da Geórgia ou do Azerbaijão – sobretudo as melancias. Há toda uma área que só vende flores, que oferecer flores faz parte da cultura quotidiana das pessoas daqui. A zona dos talhos está num hangar numa das pontas do mercado. Na ponta oposta, estão as bancas de venda de peixe. A carne é barata, raramente as melhores partes indo além dos 12 euros por quilograma. O peixe ainda é mais em conta e a variedade é muito diferente da que vemos em Portugal. Há muita lampreia, esturjão, enguias e outros peixes de rio, todos com um ar que mete medo, para além do inevitável salmão de cultura. Muito do peixe é vendido fumado. Fumar o peixe é uma tradição que vem dos tempos de outrora e que continua a fazer parte dos gostos de agora.
Tudo é uma curiosidade que vale a pena explorar. E tudo se passa num ambiente quase sem ruído. Ir ao mercado em Riga é, por isso, no silêncio das cores e na beleza das pessoas, uma espécie de viagem espiritual.
Ontem, no centro da cidade, o jovem polícia discutia com uma automobilista alemã, que havia estacionado num sítio que dizia paragem proibida. A senhora argumentava que não tinha saído do carro e estava apenas à espera do marido, que tinha ido pagar a conta e buscar as malas ao hotel. O jovem polícia, de boas maneiras, explicava-lhe que isso não era justificação que se pudesse aceitar. Apontava para o sinal de proibição e explicava-lhe que trinta metros mais à frente já era permitido parar, embora por apenas 15 minutos, no máximo, e contra pagamento. A senhora não queria aceitar e a coisa estava a ficar azeda. Entretanto, fui andando.
O interessante da estória era que o polícia, um simples agente de rua, falava inglês com fluência. Como poderia ter falado em letão ou em russo. O incidente veio uma vez mais confirmar a minha impressão que em Riga os jovens falam frequentemente três idiomas. Cada vez que vou a uma pequena loja e que inicio a conversa em inglês, recebo resposta, do outro lado do balcão. Com naturalidade, sem hesitações.
Dizem-me que muitos dos jovens terão estudos universitários e que, depois, trabalham no que aparece. Não sei se assim será. Mas que se fica com a impressão de que existe um nível de escolaridade elevado entre a juventude, isso sim. E muita educação e boa vontade.
É delicioso passear nas ruas do centro de Riga, a capital de Letónia. A maioria está fechada ao trânsito de automóveis, naquelas em que há carros, circula-se com calma e prudência. Logo isto faz uma grande diferença. Há toda uma zona de parques e de passeios entre as flores. E a maioria, se não todos, os prédios de Art Nouveau foram reabilitados e são um prazer para os olhos e a alma.
Respira-se tranquilidade nesta cidade. E beleza humana, que ninguém sai à rua arranjado de qualquer maneira. Antes pelo contrário. A rua é algo de solene e de bem tratado e esse ambiente exige que as pessoas tenham um comportamento adequado.
Respira-se, igualmente, patriotismo e fé no futuro. Encostada que está às costas do gigante russo, a Letónia é fundamentalmente um país que quer ser ocidental e do mainstream europeu.
Uma noite serena na cidade velha de Riga. É sexta-feira à noite, está tempo seco, 14 graus, a juventude veio para o centro da cidade. Trata-se de hábito que surgiu após a queda da União Soviética. Dá prazer ver as pessoas a desfrutar a tranquilidade de uma capital bonita, limpa e bem restaurada. E ver a beleza desta juventude. Há muita gente muito bela.
Dei a ultima volta, depois de dezassete dias na cidade, pela urbe antiga. Amanhã, a direcção é Frankfurt e assim sucessivamente.
Quando cheguei, no início desta estada, e voltei à Academia de Defesa da Letónia, o edifício cheirava a pintura fresca. De facto, embora tivesse sido pintado há um ano, voltaram a faze-lo agora, antes do começo do nosso exercício. Para que tudo esteja apresentável e para honrar quem vem de fora. Lembrei-me, então, da rainha de Inglaterra. Elizabeth II quando sai do palácio em visita a qualquer ponto do reino fica sempre com a impressão que a Grã-Bretanha cheira a tinta...Creio que achará, ao fim de tantos anos de reinado, que assim é. Na verdade, é penas um país pintado de fresco, antes da chegada da rainha.
Em Portugal, como as coisas estão agora, penso que seria assobiada. E talvez levasse com uma lata de tinta na cara. Andamos com as estribeiras perdidas, diria gente com um pouco de bom senso...É ou não é verdade?