A cimeira do G7, que hoje começou na Baviera, tem quatro grandes preocupações em cima da mesa:
A política de agressão de Vladimir Putin, que está num crescendo e é bastante preocupante. Como irá evoluir este conflito nos próximos tempos?
A nova maneira da China conduzir a sua política externa, que é mais explícita nos ataques aos EUA e à NATO. Aqui, a aprovação pelo G7 de uma Parceria Global de Infra-estruturas, num total de 600 mil milhões de dólares para o período 2022-27, deve ser vista como estando em competição directa com o programa chinês da Nova Rota da Seda.
O estado da economia mundial: inflação, disrupções das cadeias de abastecimento de matérias-primas e de componentes, insegurança alimentar, endividamentos insustentáveis, etc.
Os corredores económicos que a China está a construir através de Myanmar e do Paquistão são dois pilares da Nova Rota da Seda, a ambição gigantesca que o Presidente Xi Jinping formulou, após chegar ao poder em 2012. Gigantesca é aliás uma adjetivação insuficiente, minúscula mesmo, perante a enormidade e a complexidade dessa ambição. Mais ainda, a envergadura da Nova Rota da Seda tem causado ansiedades em muitos círculos de decisão geopolítica na Europa, América e Ásia, e explica uma boa parte do sentimento de desaprovação, de oposição mesmo, que agora existe em relação à China. Em política, como na vida, a ambição desmesurada acaba por ser uma fonte de grandes conflitos.
O corredor China-Myanmar é acima de tudo um investimento em pipelines – cerca de 800 quilómetros –, já concluídos e que tive a oportunidade de visitar há cerca de uma ano. Está neste momento a ser planeado um projeto complementar, que consiste na construção de uma ferrovia, que seguirá o percurso do oleoduto e do gasoduto desde a costa marítima birmanesa no Golfo de Bengala até Kunming, a capital da província chinesa de Yunnan. Estas infraestruturas destinam-se a facilitar as importações petrolíferas da China, evitando o longo e perigoso percurso através do Estreito de Malaca e pelo Mar do Sul da China. O petróleo e o gás virão do Médio Oriente e de África. A via-férrea fará parte da ligação, que continuará por via marítima, entre a China, Mombasa e Djibouti, dois portos de grande importância estratégica, quer como pontos de entrada em África quer como bases de apoio ao trânsito de mercadorias para a Europa. Djibouti oferece, igualmente, uma localização excecional para a proteção da navegação entre o Oriente e a Europa. Chineses, americanos, franceses, japoneses, indianos e outros, todos querem ter uma presença militar em Djibouti. A China é a única potência que combina nesse território defesa com infraestruturas económicas.
Voltando ao corredor que atravessa Myanmar, verifiquei que as grandes companhias chinesas de petróleo, gás e obras públicas têm luz verde dos militares birmaneses e do governo civil de Aung San Suu Kyi. Consideram, além disso, que cabe às autoridades de Myanmar tratar da sorte das comunidades afetadas pelos projetos. O problema é que ninguém explicou nada às populações nem prometeu qualquer indemnização pelas expropriações e demais perdas. O resultado, para já, como o constatei pessoalmente, é a hostilidade crescente das diferentes comunidades birmanesas contra os chineses. Mais tarde, a própria segurança dos projetos poderá estar em risco.
O corredor paquistanês é apresentado como o navio almirante no universo da Nova Rota da Seda. Começa na região chinesa de Xinjiang e termina no porto paquistanês de Gwadar, no Índico, muito perto da entrada do estratégico Golfo de Omã. Não visitei esse empreendimento faraónico – um investimento de 87 mil milhões de dólares americanos para financiar estradas, ferrovias, centrais elétricas e zonas económicas especiais. Mas vejo que a intenção é clara. A China ajuda o Paquistão a modernizar as infraestruturas de comunicações, de produção de energia, industriais e portuárias. Em troca, tem acesso direto ao Oceano Índico e a várias zonas francas, onde poderá contar com a mão-de-obra abundante e barata que o Paquistão tem disponível. Além disso, reforça o poder político e militar de um aliado fundamental na sua rivalidade crescente com a Índia. Sei que também aqui, como em Myanmar e noutros países de investimento chinês em larga escala, há o problema da adesão ou da hostilidade das populações. A China é vista como uma aliada do regime e o regime é tido como alheio aos interesses do povo. Temos de novo a fragilidade acima mencionada.
Há, no entanto, quem tenha consciência na China destas coisas e saiba que os acordos com regimes de legitimidade duvidosa têm pés de barro. Alguns centros de estudos já começaram a debater as questões do impacto dos megaprojetos nas comunidades afetadas, na Ásia e em África, bem como a desconexão que existe entre as lideranças políticas nos países anfitriões, que são favoráveis à penetração chinesa, e as populações, que consideram que os seus políticos são os principais beneficiários dos investimentos em causa. Tenho ficado surpreendido com a franqueza de certas intervenções dos académicos chineses. Uma China monolítica, sim, mas com alguma subtilidade de tons.
(Publicado no Diário de Notícias de 17 de outubro de 2020)
O meu texto de hoje no Diário de Notícias é sobre a China e a Nova Rota da Seda. Tem fundamentalmente duas mensagens. A primeira é que esta iniciativa do Presidente Xi Jinping é demasiado gigantesca. Revela uma pressa em ganhar acesso a várias partes do mundo, com projectos faraónicos a serem executados ao mesmo tempo, sem que se perceba se há uma lista de prioridades ou não. A impressão que fica é que não há uma hierarquia de prioridades. Xi Jinping deve ter considerado que o músculo financeiro da China daria para tudo. Parece-me um erro. Mesmo Deus, segundo dizem, resolveu fazer o mundo em sete dias e não tudo de uma só vez. A segunda é que não tem havido qualquer tipo de preocupação em conquistar o apoio das populações que são afectadas pelos projectos. Isto está a provocar um retorno da manivela, uma oposição crescente aos investimentos chineses. Esta poderá ser a fragilidade mais crítica de todo o empreendimento.
Logo que o texto esteja disponível em rede aberta colocarei o link no blog.
De manhã, numa caminhada de uma hora ao longo do Tejo, ali para os lados da Torre de Belém e mais além, contei cinco turistas. E vi um dos autocarros anfíbios entrar no rio, para fazer a volta habitual, com duas pessoas a bordo: o motorista e o empregado que serve os passageiros. A Torre estava aberta e não tinha qualquer visitante. Para surpresa minha, nem guarda de honra havia, frente ao monumento dos Antigos Combatentes. Estranho, mas verdade. Todos aqueles nomes inscritos nas paredes à volta do memorial estavam abandonados à solidão que a crise lhes trouxe. A crise justifica tudo, costumo dizer e aqui estava mais um exemplo da justeza desse meu ditado.
À tarde, passei quatro horas numa videoconferência, que reuniu colegas da Suíça, de Washington, Londres, Dakar, Ouagadougou, Johannesburgo, Yangon, Bishkek e dos Balcãs. O objectivo era fazer o ponto da situação de certos conflitos violentos, nestes tempos de pandemia. Também se procurou olhar para a frente, para tentar perceber o ecossistema político que está em formação.
A verdade é que há poucos motivos para optimismo, quando se trata de países com grandes problemas internos e má gestão política. O caos cívico e a falta de capacidade das administrações públicas são obstáculos enormes no caminho da recuperação. Os governos reagem autocraticamente e impõem restrições que não têm outra justificação para além de esconder a incompetência, a apropriação ilegítima do poder por uma minoria e a corrupção. As organizações da sociedade civil são especialmente visadas. Aos cortes nas contribuições financeiras junta-se a repressão e a difamação. As economias nacionais, já fracas à partida, quando não estavam em ruínas, estão agora perto da catástrofe. E o potencial para novos conflitos internos é hoje maior.
Mas o importante é não cruzar os braços. Foi isso que discutimos em pormenor. Como também se analisou o que a China está a fazer nessas regiões e qual tem sido a resposta das populações. Em geral, não é favorável. Mas os governos nacionais olham para Beijing como quem procura uma tábua de salvação. Sobretudo porque os outros actores internacionais estão ausentes ou em modo lento.
É toda uma realidade que está a emergir e que tem muito de novo. É isso que é preciso compreender, enquanto se reconhece que ainda há muitas cartas por jogar.
A China começa a fazer medo. O projecto do Presidente Xi Jinping, inspirado na ideia de uma nova Rota da Seda – Uma Faixa, Uma Rota – tem uma dimensão avassaladora. Quem se oponha a ele, por boas ou más razões, vê nesse projecto uma economia gigante a tentar controlar outras economias bem mais pequenas e menos desenvolvidas. Vê laços de dependência a serem tecidos com fios muito grossos, que não serão necessariamente de seda.
As relações da China com o resto do mundo precisam de ser tratadas com muito cuidado, por quem manda em Beijing. É fundamental que os líderes transmitam uma mensagem forte e inequívoca de respeito pelos interesses mútuos.
Este é um tema que vai estar na mesa dos analistas de estratégia internacional. A atenção despertou agora. A procissão ainda vai apenas no adro.