Escrevo sobre a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) na Visão que hoje saiu para a rua.
Passo a transcrever o meu escrito. Boa leitura.
CPLP: a renovação necessária
Victor Ângelo
Estamos nas vésperas do encontro anual dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Vai decorrer a 23 e 24 deste mês, em Díli, porque Timor-Leste assegura a presidência da Comunidade até meados do próximo ano. Ainda bem. Os dirigentes timorenses têm revelado um empenho exemplar. Estão sinceramente interessados no bom funcionamento da CPLP, sobretudo no que respeita ao afinamento da visão comum e à adaptação da organização às novas realidades internacionais.
Criada em 1996, a Comunidade tem um passado mais variado e rico do que muitos imaginam. Deve, no entanto, evitar a dispersão, o toca a tudo e a rigidez oficial. É altura de proceder a um balanço e dar um enfoque claro e incisivo às ambições para os próximos anos. Existem condições para que isso possa acontecer. Para além do dinamismo da liderança timorense e resolvida que está a questão da Guiné Equatorial, um assunto que criara uma tensão política aguda entre os Estados membros, a última cimeira, em 2014, deu luz verde a um processo de reflexão estratégica. Há, deste modo, um mandato que é preciso saber aproveitar. Para mais, o atual Secretariado Executivo já demonstrou que está pronto e tem a genica necessária para apoiar um exercício de renovação.
Não será, no entanto, uma tarefa fácil. As organizações deste tipo resultaram das ambiguidades pós-coloniais e de uma maneira de ver a cooperação e a ajuda ao desenvolvimento que já não faz grande sentido. O que une os países membros é ténue e, com a exceção da língua, são coisas doutros tempos, lembranças e nostalgias dos mais velhos. É fundamental encontrar uma nova razão de ser, que mobilize realidades geopolíticas muito diversas. É esse o debate os dirigentes devem ter a coragem de enfrentar.
Para além de coragem, pede-se diplomacia, peso e medida. A organização é de todos, não é uma extensão do ministério dos Negócios Estrangeiros do país A ou B, nem um apêndice de um qualquer instituto de cooperação. Tem que funcionar como uma instituição intergovernamental e na base de uma plataforma administrativa supranacional. Assentar o seu funcionamento nas práticas do Estado onde se situa a sede não me parece ser a melhor opção. Por exemplo, o Secretariado deve poder atrair inclusivamente os profissionais mais competentes da nação que pague os salários mais elevados. Aplicar a escala remuneratória portuguesa tem como consequência a falta de entusiasmo por postos profissionais na CPLP de candidatos de topo do Brasil ou de Angola, para mencionar apenas dois casos.
Para começar, é preciso conquistar a opinião pública. A comunidade de países só conseguirá ganhar asas se se transformar numa comunidade de povos. Há que ultrapassar as dimensões puramente estatais, que têm a sua importância mas que pouco dizem aos anseios das pessoas. As populações têm que ver vantagens neste projeto. E não me refiro apenas ao Brasil, onde só uma mão cheia de iniciados sabe do que estamos a falar. Para os cidadãos, a CPLP tem que se traduzir num esforço coletivo por mais dignidade e segurança, ou seja, ser um espaço de direitos humanos, uma espécie de segunda pátria capaz de abrir horizontes e de funcionar como um porto de abrigo. Deve igualmente facilitar as trocas comerciais e os investimentos. Assim, a língua comum seria o cimento de uma visão capaz de promover o respeito de todos e os direitos de cada um bem como uma alavanca de resposta conjugada aos desafios da globalização.
Numa discussão recente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, um embaixador amigo perguntava-me, com uma certa amargura, qual era a minha opinião sobre a entrada da Guiné-Equatorial para a Comunidade dos Países de língua Oficial Portuguesa (CPLP). Acrescentou, como preâmbulo à sua questão, algumas considerações conhecidas sobre a situação dos direito humanos nesse país. Poderia ter também referido outros aspectos, como os relacionados com a má governação, a corrupção e mesmo a segregação étnica, mas não o fez.
Agora a Guiné-Equatorial está nas vésperas da sua adesão à CPLP.
E a minha resposta continua a ser a mesma. A CPLP não é propriedade do governo português. Cabe à maioria dos seus membros decidir sobre as questões de interesse comum. Portugal não pode dar a impressão que mantém uma atitude paternalista e de ingerência pós-colonial. É verdade que a entrada de um novo Estado membro tem que ser aprovada por consenso. Mas também há momentos em que o consenso se obtém não por se estar de acordo mas por haver outros interesses mais altos em jogo. O relacionamento, neste caso, com Angola e São Tomé e Príncipe, os padrinhos do governo de Malabo, são importantes para nós.
E a Guiné-Equatorial, um país que em 1968 era dos mais desenvolvidos de África e que hoje é um exemplo dos enormes contrastes que existem entre a riqueza absoluta de quem controla o poder e a miséria de grande parte da população, passa a ter assento na CPLP.
Não será por isso que mudará o seu modo de governação.
E a opinião pública em Portugal deverá, agora mais do que nunca, chamar a atenção de todos e de quem nos quiser ouvir, para a importância da boa governação e dos direitos humanos. Em Malabo, em Bissau, em Luanda, ou mesmo aqui, em Lisboa.
Desde os meus tempos de Moçambique, na primeira metade da década de oitenta, sempre considerei Joaquim Chissano como um homem inteligente e sem papas na língua.
Hoje, na entrevista que dá ao Expresso, volta a mostrar que vale a pena prestar atenção ao que ele diz. Instado a falar sobre o futuro da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o Antigo Presidente disse: ”Há quem veja na lusofonia uma maneira de perpetuar a nostalgia do império”.
Muitos irão achar que Chissano exagera. Que na realidade será contra Portugal e que esta afirmação resulta de pesadelos coloniais de que não conseguiu libertar-se. Seria um erro pensar assim, tentando diminuir uma posição que conta e que é, provavelmente, partilhada, embora nalguns casos subconscientemente, por outros líderes das antigas colónias.
Vejo muita verdade nessa opinião. Noto, com frequência, que vários dos que falam, em Lisboa, da lusofonia têm em mente a apologia de um passado que há muito que deixou de existir. Estão a tentar justificar uma ideia de grandeza que tem mais de lírico do que de real. A língua é importante não só quando é falado por milhões, mas sobretudo quando nos permite uma maior aproximação com os outros povos que, em certa medida, a partilham. A língua é um instrumento de comunicação. No caso da CPLP, o objectivo deve ser o de transformar o português num veículo de entendimento entre povos muito diversos, uns com raízes lusitanas, mesmo que míticas, outros com antepassados e valores bantus, e mais outros, como no caso do Brasil, com raízes complexas, misturadas, ou ainda, pensando em Timor-Leste, com os pés assentes numa variante da cultura malaia.
A Coreia do Norte não formalizou, até agora, um pedido de admissão à CPLP. Nem Robert Mugabe, apesar dos vestígios de história e presença portuguesa que podemos encontrar no Zimbabwe. Mas se for decidido, na cimeira da próxima semana, em Maputo, aceitar a Guiné-Equatorial como membro da comunidade lusófona, uma decisão que está na forja, com que autoridade moral se poderá objectar a futuras candidaturas de tiranias similares?
Haverá um certo exagero no parágrafo precedente. Se em grande medida a ditadura sinistra e surrealista que prevalece na Guiné-Equatorial, uma antiga colónia espanhola, pode ser comparada ao que se passa na Coreia do Norte, mas sem a elegância e a sofisticação dos coreanos, já o mesmo não se poderá dizer em relação ao Zimbabwe de hoje. São ambos estados párias, face à comunidade internacional, mas o regime de Harare permite algum espaço de liberdade à oposição, o que não é o caso de Teodoro Obiang Nguema, o tenebroso ditador que está no poder desde 1979. Na Guiné-Equatorial, a oposição ou está presa na infame prisão de Playa Negra, em Malabo, onde é sistematicamente torturada e, nalguns casos, executada, ou então, encontra-se no exílio.
A reputação de Obiang não se baseia apenas na violação brutal dos direitos humanos da população equato-guineense. A cleptocracia, a apropriação desenfreada da riqueza nacional pela família presidencial, é a outra face do regime. Ainda recentemente, a família tinha num obscuro banco americano, que também já havia prestado serviços a Pinochet, uns depósitos que totalizavam cerca de 700 milhões de dólares. Este é apenas um exemplo, dos muitos que são conhecidos. Os rendimentos do petróleo, que se transformou nos últimos quinze anos na fonte de riqueza nacional, se fossem utilizados para o bem comum, teriam permitido tirar da pobreza os cerca de 700 mil habitantes do país. A realidade é outra. As taxas de mortalidade infantil e maternal, dois dos indicadores que maior correlação têm com as condições de vida das famílias, são dos mais elevados do mundo. As estatísticas oficiais escondem a verdade, com números fabricados. Por falar em dados falsificados e propaganda do tipo orwelliano, o sítio oficial do regime na internet afirma, na sua página de abertura, que o índice dos direitos humanos do país é comparável ao da Espanha e superior ao dos Estados Unidos. Isto numa terra onde até o primeiro-ministro treme de medo, cada vez que o nome do presidente lhe vem à cabeça.
É este ditador que os dirigentes da CPLP se preparam para integrar na lusofonia. Há quem diga, com ironia, que com Obiang à volta da mesa, Eduardo dos Santos fará figura de santo. É verdade que Angola lidera a pressão para que a Guiné-Equatorial seja admitida. São Tomé e Príncipe, por motivos de vizinhança, também está particularmente interessada. Não se entende contudo por que razão seria necessário ter a Guiné-Equatorial como membro a parte inteira da CPLP, para que Angola e São Tomé pudessem aprofundar as suas relações bilaterais com esse país.
A admissão não contribuirá, em nada, para a transformação democrática e para acabar com a pilhagem dos recursos públicos da Guiné-Equatorial. De facto, só a acção combinada dos Estados Unidos, da França e da Espanha, os parceiros mais importantes do país, poderá pôr fim a uma tragédia de várias décadas de governação pelo terror. Se for avante, a adesão poderá, isso sim, ser um golpe fatal na pouca credibilidade que a CPLP ainda consegue manter viva.
Nos comentários ao blog de ontem aparecem temas importante. As relações da China com a África e a necessidade de informar os jovens portugueses sobre as questões com que se debatem os povos africanos são dois desses temas.
Num dos próximos textos para a Visão irei escrever sobre a China e a maneira como está a ganhar espaço em África. Para já, queria apenas mencionar que a diplomacia chinesa é das mais bem preparadas, nos tempos de hoje. Sabem fazer, estão motivados para o fazer, têm recursos humanos e materiais e embaixadas em toda parte. Excepto nos países, que são poucos, que tiveram a má ideia de reconhecer Taiwan. Uma vez que isso acontece, a China retira-se de imediato. Fecha a sua embaixada, termina as relações diplomáticas, interrompe os projectos em curso. Assim aconteceu com São Tomé e Príncipe.
Os jovens portugueses gostariam de saber mais sobre África. Muitos são filhos ou netos de gente retornada, alguns têm mesmo as suas raízes ancestrais no Continente. Há desconhecimento, o que leva a percepções negativas. Em África estão a acontecer transformações positivas, em pelo menos metade dos países. Além disso, para muitos jovens, África pode representar uma grande oportunidade de começo de uma vida mais internacional. A esse título, é bom lembrar que hoje é o Dia Internacional do Voluntariado. O Programa de Voluntários da ONU, baseado em Bonn, é uma janela que se pode abrir para os jovens portugueses que queiram tentar uma experiência profissional em África, ou mesmo, noutras partes do mundo. Basta ter um diploma universitário, um pouco de experiência, não é preciso muita, e vontade de sair para além das nossas limitações nacionais. Vale a pena pensar nessa hipótese.