A igreja de Sam Ouandja, na RCA, está por acabar. Algum missionário mais ousado deve ter passado pela vila e pensado numa construção sólida. Mas, nestas terras de violências, tudo é precário.
Mesmo as pessoas parecem estar por acabar. Como se faltasse acrescentar qualquer coisa à alma das gentes. Vive-se devagarinho, na esperança que as balas perdidas passem ao lado.
Hoje, Sam Ouandja teve um novo tipo de visitas. Ontem, foi a minha vez. Ainda tenho que escrever sobre essa missão. Agora, foi um grupo rebelde rival, que resolveu, esta manhã, atacar os combatentes do UFDR. Cada grupo representa uma etnia vizinha, inimiga nas horas más, detestável, nos tempos mais serenos.
Foi uma confusão de morteiros, rajadas de kalash, gritos, a população civil a fugir para o mato, os meus soldados a tomar posição à volta do campo de refugiados.
No final dos combates, os assaltantes retiraram-se, levando consigo as duas únicas viaturas que existiam na cidade e que pertenciam às ONG Triangle e IMC ( International Medical Corps). Os ecologistas diriam que temos agora uma localidade sem carros. É verdade. Mas não sei se este facto entra nos planos da Conferência de Copenhaga.
Acabei por ter que proceder a uma evacuação do pessoal humanitário. Mandei dois helicópteros. Mas a lista de passageiros a evacuar e o grupo que nos esperava na pista não coincidia. Alguns humanitários tinham feito umas "amizades" locais e queriam levar as moçoilas amigas...Os pilotos, Russos que são, não tinham instruções para tanto. E, por isso, estavam prestes a levantar voo, de regresso à base, sem trazer ninguém...O meu conselheiro político principal, homem velho e sabido, que compreende bem a natureza humana e a força da vida, encontrou finalmente uma solução...
Só que com a demora, os helicópteros já não tiveram tempo de ir buscar um outro grupo de gente a evacuar, a cerca de cem quilómetros a Norte de Sam Ouandja.
É uma tarefa para amanhã. São quatro, sem contar com as companhias possíveis...A vida no mato não é só feita de espinhos...
Estou cansado. Viajei cerca de dois mil quilómetros, num dia que começou muito cedo, era ainda noite cerrada, para ir negociar com homens armados, gente muito violenta. São cem, neste sítio, têm estado a ameaçar de morte e destruição uma quinhentas famílias de refugiados provenientes do Darfur. Ameaçam igualmente muitos dos civis que vivem na zona.
As negociações tiveram lugar em Sam Ouandja, na República Centro-Africana. Tenham a paciência de procurar no Google.
Voltarei ao assunto. Que é muito grave. Está em causa a vida de muita gente, em terras isoladas, é verdade, são três a quatro dias de viagem com o todo-o-terreno, desde a capital do distrito, 120 marcos a Oeste, oito dias às cavalitas de um burro, a partir da fronteira com o Darfur. Os diamantes e o ouro, que são explorados artesanalmente na região, explicam muita coisa.
A ameaça de represálias contra os refugiados do campo de Sam Ouandja continou a ocupar as atenções de todos: governo, Nações Unidas, agências humanitárias. Os rebeldes exigem que o campo seja mudado para uma outra região da República Centro-Africana. Dizem que vão bloquear os acessos ao campo, impedir a passagem dos camiões do Programa Mundial de Alimentos. Na verdade, não querem estes refugiados nas suas terras, por razões tribais. É o problema das identidades e das diferenças. Quando há instabilidade, gente diferente faz medo.
Tive que enviar 18 militares para a zona. Amanhã irão mais. São tropas de elite, mas não tenho muitas, que o Conselho de Segurança só me autorizou um pequeno número de soldados nesta região, vasta e abundante em problemas. Um dia terei que contar as razões desta decisão do Conselho.
Tornei público um comunicado, para lembrar que todas as acções de violência contra os refugiados e os agentes das ONGs e da ONU caiem no âmbito da lei humanitária internacional e das violações dos direitos do homem.
Veremos.
Entretanto, mal tive tempo de ver a tragédia em que a Grécia se encontra. Os jornais falam já dos países da zona euro que estão com problemas fiscais semelhantes. Portugal aparece na lista. Estes factos vão ter um impacto sobre o euro. Mostram, por outro lado, que a disciplina macroeconómica da área do euro está de pantanas. Quando esta disciplina falha, o que se pode seguir é ainda pior.
Vi, no entanto, o drama pessoal que Berlusconi está a viver. As imagens foram repetidas por toda a parte. Uma vez mais, convém reafirmar que nada justifica a violência contra as pessoas. Nem em Sam Ouandja, no meio das florestas mais fechadas, na fronteira com o Darfur, num mundo que continua embrutecido, nem em Milão, às portas da moda e das catedrais que nos esmagam.