O acidente de aviação que descrevi ontem teria muito mais para contar.
Viajei centenas de horas nos céus africanos, de avião e de helicóptero. As minhas missões exigiam que assim fosse. Era a única maneira de chegar a lugares longínquos, por vezes para uma reunião com líderes locais ou chefes rebeldes, e ainda conseguir voltar a um ponto seguro antes do fim do dia.
O acidente que ontem contei aconteceu quando viajava de Mwanza, uma cidade importante, mas muito rudimentar na margem sul do Lago Vitória, para Bukoba, na parte noroeste do lago, a cerca de duas horas de voo. A viagem era feita voando sobre o lago e utilizando, a partir de certa altura, as referências geográficas, a paisagem, como pontos de orientação. Já havia efectuado várias vezes o percurso, por causa da crise de genocídio no Ruanda. Conhecia alguns dos pontos de referência, enseadas, montes, picadas, pequenas aldeias à beira da água, etc. Só que nesse dia, uma tempestade gigantesca sobre o lago obrigou-nos a sair da rota habitual e a procurar as margens muito antes das regiões que eram habitualmente utilizadas como orientação.
Ao chegar à vista da costa notei que o piloto estava desorientado. Achei estranho, pois era um dos pilotos com mais horas de voo de entre os naturais da Tanzânia e um profundo conhecedor do Norte do país. Perguntei-lhe, para o testar, qual era a direcção de Bukoba. Essa era uma questão fácil, estávamos ainda muito a sul e a resposta certa só poderia ser seguindo a margem do lago na direcção do Norte. Em vez de me responder, pegou na carta da região para comparar o que via ao nível do solo com o que a carta indicava. Disse-lhe que não valia a pena e que seguisse para Norte. O homem estava embriagado.
A determinada altura, viu uma picada e disse-me que era a pista de Bukoba, que ia pousar. Respondi-lhe que nem pensar, que continuasse ao longo do lago. Tínhamos chegado a uma situação em que ele já não comandava, apenas obedecia. E sabia, tão bem como eu, que a situação em que nos encontrávamos era muito grave.
Finalmente Bukoba apareceu no horizonte. Mas ele fez a aproximação errada, muito acima da altitude que as montanhas permitiam. E por isso, e pela chuva que havia caído na pista de terra batida, e por tudo o mais, fomos direitos ao lago.
O resto contei ontem. Só não contei que horas antes da nossa partida de Mwanza, o piloto, uma pessoa adorável, tinha recebido o resultado do seu teste pessoal sobre a SIDA. Uma doença que era uma verdadeira pandemia naquela parte de África.
Dia Mundial de Luta contra a Sida. Um desafio em certas partes do globo, nomeadamente em África e no Sudeste Asiático. São sobretudo os mais pobres que têm maiores dificuldades de acesso à medicação necessária para os manter activos e em vida. A pandemia da COVID-19 não nos pode fazer esquecer o combate diário que muitos enfrentam perante o vírus da Sida.
Comemora-se hoje, como acontece há anos, a luta contra a Sida. É um dia que serve para lembrar todos os que estão atingidos pela doença, bem como o impacto que a Sida tem na vida de certas comunidades particularmente vulneráveis. Por isso, deixo aqui uma mensagem muito especial para todos os que conheci em África e que, directa ou indirectamente, têm que fazer frente a esta pandemia
Hoje é o Dia Mundial da Luta Contra a Sida. Não convém deixar passar a data em branco. A epidemia continua a infectar milhares de pessoas por dia. Nalguns países é uma causa de mortalidade de primeira importância.
Quando trabalhei na África Austral, vi muita gente sucumbir à doença. Incluindo gente com quem trabalhava no quotidiano. Uma dessas pessoas foi a minha empregada doméstica, uma mulher cheia de energia e de vontade de fazer coisas, uma gigante em todos os sentidos. Como muitas mulheres, foi infectada pelo marido.
Lembro-me igualmente de dois colegas do escritório da ONU em Harare. Dois zimbabueanos, um homem e uma mulher. Estavam ambos num estado avançado da infecção. Outros, na nossa delegação, já haviam falecido antes deles. Estes dois salvaram-se porque a ONU passou então a reembolsar as despesas que o pessoal nacional tivesse que desembolsar com a aquisição dos medicamentos, despesas que eram muito elevadas e não estavam à altura de quem recebia um salário local. Um anos depois do início do tratamento pareciam outras pessoas. Ninguém diria que estavam infectados. Mais tarde, fui encontrar um deles na Serra Leoa, na missão de manutenção de paz da ONU. Como era uma mulher ainda jovem e muito mexida, acabou por arranjar um companheiro entre o pessoal internacional da missão. Com quem vivia. Nunca disse ao seu novo companheiro que tinha um problema. E eu também não o informei. Hesitei várias vezes, falei com ela sobre o assunto, mas sabia que ela não lhe diria. E eu também não disse. Achei, bem ou mal, que a responsabilidade não era minha.
Estes são os dilemas de quem anda por onde há problemas humanos por todos os lados.
Amanhã, bem cedo, viajo para Entebbe, na margem Norte do Lago Vitória. A região é linda, com as enseadas recortadas a servir de pano de fundo aos jardins floridos e às árvores equatoriais de grande porte. O país mudou muito, nos últimos vinte anos. No final da década de oitenta, o Uganda era um caos, a sair da loucura de uma guerra civil . Actualmente, está em progresso rápido. Museveni, o presidente, não abre as portas da democracia, mas consegue convencer os doadores e vai sendo apaparicado pelo Ocidente. Contradições.
Vale a pena falar inglês, ter um bom clima, residências agradáveis, jardins magníficos. Os Ocidentais gostam e ficam menos críticos. Mas também é verdade que nalgumas áreas do desenvolvimento os progressos são visíveis. Como o são igualmente no domínio da luta contra a sida.
Um dia em cheio, para quem segue os assuntos internacionais. Dia Mundial de Luta contra a Sida. Nunca é demais falar na Sida. Conheço muita gente que vive os seus efeitos ao quotidiano. É um inferno. E um assunto de grande complexidade. Entrada em vigor do Tratado de Lisboa, com celebrações que ficaram marcadas pela ausência dos principais governantes europeus. Fim da Cimeira Ibero-Americana, com muita divisão sobre as Honduras e pouca substância, uma espécie de reunião só para a fotografia. A decisão de enviar mais 30 000 soldados americanos para o Afeganistão. Uma decisão difícil e de custos elevados. Uma guerra com uma estratégia que precisa urgentemente de ser revista.
Depois, vieram os números mais recentes sobre o desemprego na UE. Um drama. Portugal continua a ver o desemprego aumentar. Os jovens europeus de menos de 25 anos são as principais vítimas do desemprego. A saída da crise a continuar sem saída. Uma crise de sistema que os senhores dirigentes apelidam pudicamente de crise financeira. Se fosse apenas uma questão de finanças...
E por falar nisso, o Euro está cada vez mais sobrevalorizado. Não se compreende que ninguém fale no assunto, mostre preocupação. Ora, é uma questão bem séria, com profundas implicações no futuro da economia da Europa.
O que continua por valorizar é o caso Face Oculta. Ou melhor, há quem o queira desvalorizar. Mas é um assunto de muito peso. Muito grave.
Finalmente, uma palavra caseira, com os pés assentes na terra. Descobri hoje o Jornal de Leiria, um semanário de valor e conteúdo. Que reproduz bem a riqueza da região. Faz bem à alma ver que certas regiões do país mantêm, apesar de tudo e de não estarem nas graças de quem manda, um dinamismo exemplar.
O Vaticano é uma anomalia. E pouco mais do que uma curiosidade histórica.
Os padres e religiosos africanos, quando vêm estudar para a Santa Sé, ou servir a igreja em Roma, sentem-se discriminados. Com base na cor da pele e na aparência física.
O Papa fala da SIDA de uma maneira que não faz sentido. É apenas mais uma expressão do anacronismo em que vive a instituição.