Hoje, vi-me forçado a lembrar ao meu amigo D. que estamos em 2022. Já não vivemos em 1991 ou 1998, e ainda menos nas décadas anteriores. Agora, as pessoas e as suas opiniões contam como não contavam nesses tempos. Se os ucranianos não querem ser russificados, ou aderir à Rússia de Vladimir Putin, não há nenhuma teoria geopolítica que justifique o uso da força. Esse uso é pura e simplesmente ilegítimo.
E já agora, o mesmo se pode dizer sobre Taiwan, o Tigray, a Palestina e outros territórios.
As notícias que nos chegam de África são muito perturbadoras.
Na Etiópia, assiste-se a uma intensificação da guerra civil, com as tropas do Tigray a aproximarem-se da capital, Addis Ababa. A evacuação dos cidadãos de países ocidentais começa amanhã em larga escala. A mediação americana não está a resultar, pois ambos os lados do conflito pensam que a vitória militar é possível. Os etíopes são conhecidos pela sua teimosia e por possuírem um orgulho muito forte, que não aceita derrotas.
No Burkina Faso, a insegurança é cada vez maior. Hoje foram a enterrar 49 gendarmes mortos recentemente por um grupo islamista. Entretanto, houve um outro ataque contra as forças de segurança, que provocou igualmente um número de mortos bastante significativo. A capacidade das forças armadas e de segurança está agora seriamente ameaçada por falta de meios, de organização e, acima de tudo, por uma direcção política mais preocupada com formalismos do que a coordenação dos esforços de segurança. A tendência é para o agravamento das ameaças islamistas e das mortes às mãos dos terroristas.
Na região em que o Burkina Faso se insere, há cada vez mais menores a serem raptados e integrados nos grupos terroristas. Servem como combatentes, mensageiros, cozinheiros, espiões, carregadores, etc. Algumas dessas crianças têm menos de 14 anos de idade.
Entretanto, as manifestações dos cidadãos contra o poder militar no Sudão continuam a um ritmo quotidiano. A coragem dos civis é impressionante.
E assim sucessivamente, na Líbia, na Nigéria, e nos países em conflito, como a República Centro-Africana ou o Congo (Kinshasa).
A situação interna na Etiópia agravou-se bastante nas últimas 48 horas. A declaração de um estado de excepção generalizado a todo o país mostra a seriedade e a dimensão da crise. O primeiro-ministro Abiy Ahmed tem uma grande parte da responsabilidade. Em dois anos, passou de laureado com o Prémio Nobel da Paz a chefe de guerra e a promotor das fracturas étnicas.
A Etiópia tem à volta de 115 milhões de habitantes, ou seja, é o segundo país mais populoso de África, depois da Nigéria. Uma grande parte da população vive na pobreza, com desafios diários de sobrevivência muito duros. É um mosaico de etnias, com cerca de 80 grupos populacionais diferentes e uma grande hostilidade entre vários de entre eles.
Falei há pouco com a jornalista Ana Jordão da Antena 1 sobre a situação de conflito no norte da Etiópia, na região de Tigray. Faz agora duas semanas que o governo central entrou em guerra com as autoridades do Tigray e o seu braço armado, a Frente de Libertação do Povo do Tigray. O que está em causa é a autonomia da região. Na verdade, o Tigray foi-se transformando, com o tempo, num quase-estado, em confrontação aberta com o governo nacional. A verdade é que o país está muito fracturado, segundo as etnias que dominam cada uma das 10 regiões. O nacionalismo étnico é o principal desafio político. O que se passa agora no Tigray poderá amanhã acontecer noutras regiões. A Etiópia é um barril de pólvora, com 110 milhões de habitantes, e uma área 12 vezes maior do que a de Portugal.
O primeiro-ministro Abyi Ahmed, que ganhou o prémio Nobel da Paz em 2019, que atenuar as divisões étnicas. Mas, ao escolher a via militar, está a lançar achas para a fogueira.