A crise e os ajustamentos das finanças públicas dividem a sociedade, extremam as posições e levam muitos ao desespero. Têm, igualmente, um impacto apreciável sob a saúde mental e física de um número significativo de cidadãos, que sofrem de um stress agudo, com todas as suas consequências.
Constituem, na vida de um país, um momento de uma grande complexidade, que requer muito tacto político e um grande sentido das responsabilidades.
Exigem, igualmente, que as instituições da República funcionem e sejam minimamente respeitadas. Incluindo, claro está, os titulares das mesmas.
Assim deve ser, num Estado de direito e numa democracia constitucional.
Por isso, apelos a acções políticas violentas e incitamento à violência contra os titulares dos órgãos de soberania são inaceitáveis, por mais críticas que se possam fazer a essas personalidades.
Sugerir que os governantes irão ser corridos “à paulada” é uma visão troglodita da política. Ameaçá-los com rufiadas populares violentas corresponde a uma concepção da democracia que muitos estragos fez ao nosso país, nas décadas de dez e vinte do século passado. Em ambos os casos, trata-se de instigação à violência contra as autoridades democraticamente constituídas. Ou seja, trata-se de crimes públicos. Que, no Portugal de direito que sempre será o meu, devem ser objecto de procedimento judicial. São casos de tribunal.
É que, ao fim e ao cabo, sair da crise passa, igualmente, por uma firmeza sem hesitações no cumprimento das regras democráticas e por uma clareza absoluta em relação a quem pisa o risco.
O que se está a passar na Líbia é inaceitável. É um conjunto de actos criminosos, por parte dos dirigentes, contra a população civil. São acções que caem, sem dúvida, na área de jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Gaddafi, e o seu filho Seif, são os principais responsáveis.
Seif é um jovem sedento de poder e de dinheiro. Tem sido, nos últimos anos, o verdadeiro chefe, por detrás do trono. Das várias vezes que tive que lidar directamente com o governo líbio, quando havia uma decisão importante, a pergunta que me faziam ou o conselho que me davam eram sempre os mesmos: é melhor falar primeiro com Seif.
Hoje, em Bruxelas, onde estava a decorrer uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros, um dos ratos da diplomacia mostrava um ar preocupadíssimo e dizia que a situação no mundo árabe é muito complexa, que é preciso tratar dela com muito cuidado, que não se trata apenas de uma questão de democracia e de direitos humanos. Não entendi bem onde queria chegar. Mas sei que para quem está, hoje, a ser baleado pelas hostes armadas de Gaddafi, pai e filho, um certo respeito pelos seus direitos e pela democracia dava um grande alívio.
O " Tribunal da Consciência " que, por iniciativa de uma plataforma de ONGs portuguesas, se havia reunido ontem e hoje, para " julgar " o Estado e outros actores na área da cooperação pela falta de cumprimento dos compromissos assumidos na Cimeira Europa-África de Dezembro de 2007, resolveu " suspender a tramitação " e dar mais um ano a todos, para que tenham a oportunidade de vir a cumprir o que havia sido acordado.
Foi uma decisão ajustada. Na verdade, depois da chamada de atenção que foi este acto simbólico de julgamento, é preciso que todos os responsáveis pelas relações com África continuem a trabalhar em conjunto, para pôr em prática as decisões da Cimeira do ano passado.
O grande risco que existe, neste momento, está relacionado com a crise económica internacional e a possibilidade de que os fundos para a cooperação venham a ser cortados de maneira drástica durante 2009.
Combater este risco é uma das bandeiras que exige a mobilização da sociedade civil.
A Plataforma de ONGs portuguesas para o desenvolvimento " Eu Acuso " (www.euacuso.com.pt) promove hoje e amanhã um Tribunal da Consciência, um ano depois da Cimeira Europa-África e do Fórum da Sociedade Civil.
O "julgamento simbólico" decorre na Fundação Calouste Gulbenkian. Aberto a todos os que possam testemunhar, as acusações põem em evidência a falta de execução dos compromissos assumidos há um ano, quer na Cimeira quer no Fórum. Os temas de fundo são as migrações, os objectivos do milénio, a cooperação, a igualdade de género, a segurança alimentar, a paz, governação e os direitos humanos.
A sentença será proferida amanhã, dia em que se comemoram os Direitos Humanos.
É de louvar esta iniciativa de um grupo de ONGs portuguesas. Trata-se de um exemplo positivo de mobilização cívica. Como muitas vezes tenho defendido, a mobilização dos cidadãos faz parte da riqueza social de um país, é um indicador de progresso e tem uma capacidade muito forte de transformação político-social. É a democracia directa, em acção, ao proveito de todos.