Neste Domingo de Páscoa convido o leitor a visitar a Igreja Matriz de Birao, capital da região de Vakaga, na República Centro-Africana, bem perto da fronteira com o Sudão.
Com o tempo, a igreja, que como deve ser, está situada na zona central de Birao, perdeu os fiéis. Hoje é um edifício sem vida, numa terra que é cada vez mais islâmica. O Islão conseguiu penetrar ao nível popular, ganhar raízes locais, sobreviver às crises políticas e aos conflitos armados. A região está, hoje mais do que nunca, virada para o Sudão muçulmano. Bangui, a capital da RCA, fica longe, o cristianismo é uma religião de brancos e de gentes das cidades, um mundo distante, estranho, nestas terras bem estranhas.
A ameaça de represálias contra os refugiados do campo de Sam Ouandja continou a ocupar as atenções de todos: governo, Nações Unidas, agências humanitárias. Os rebeldes exigem que o campo seja mudado para uma outra região da República Centro-Africana. Dizem que vão bloquear os acessos ao campo, impedir a passagem dos camiões do Programa Mundial de Alimentos. Na verdade, não querem estes refugiados nas suas terras, por razões tribais. É o problema das identidades e das diferenças. Quando há instabilidade, gente diferente faz medo.
Tive que enviar 18 militares para a zona. Amanhã irão mais. São tropas de elite, mas não tenho muitas, que o Conselho de Segurança só me autorizou um pequeno número de soldados nesta região, vasta e abundante em problemas. Um dia terei que contar as razões desta decisão do Conselho.
Tornei público um comunicado, para lembrar que todas as acções de violência contra os refugiados e os agentes das ONGs e da ONU caiem no âmbito da lei humanitária internacional e das violações dos direitos do homem.
Veremos.
Entretanto, mal tive tempo de ver a tragédia em que a Grécia se encontra. Os jornais falam já dos países da zona euro que estão com problemas fiscais semelhantes. Portugal aparece na lista. Estes factos vão ter um impacto sobre o euro. Mostram, por outro lado, que a disciplina macroeconómica da área do euro está de pantanas. Quando esta disciplina falha, o que se pode seguir é ainda pior.
Vi, no entanto, o drama pessoal que Berlusconi está a viver. As imagens foram repetidas por toda a parte. Uma vez mais, convém reafirmar que nada justifica a violência contra as pessoas. Nem em Sam Ouandja, no meio das florestas mais fechadas, na fronteira com o Darfur, num mundo que continua embrutecido, nem em Milão, às portas da moda e das catedrais que nos esmagam.
Cheguei a Birao às 09:45, depois de duas horas de voo, a partir da capital do Chade.
Birao é talvez a terra africana que mais longe fica do mar. Qualquer que seja a direcção que se siga, é floresta e mais floresta. Se o nosso popular Isaltino precisasse de se esconder da justiça, o que no caso português não é necessário, este seria o sítio ideal. Para mais, Birao está sem presidente do município há meses, no seguimento das últimas investidas rebeldes. O nosso herói teria emprego de imediato.
Mesmo no centro de África, às portas do Darfur do Sul, no triângulo de fronteira entre a RCA, o Chade e o Sudão, a muitos dias de viagem de qualquer outra localidade importante. Mas apenas no tempo seco. Não nesta altura, claro, que agora, em plena estação das chuvas, só é acessível de avião.
Tive sorte. Logo após a aterragem começou a chover. Um dilúvio. A água caía como se estivéssemos na parte inferior, no sopé, de Victoria Falls, no Zimbabwe. Cortinas espessas, que fechavam o espaço à nossa volta e faziam o dia parecer-se com a noite. Às 11:00 estava escuro, parecia noite. Ou um daqueles dias fechados de Inverno da Escócia do Norte.
Quando o céu desabou estava em reunião com o Governador da região. O homem tinha vestido um fato, para me receber. De fato, em Birao. Chegou há duas semanas, para tomar conta de uma área que equivale a metade de Portugal. Tem um adjunto e dois ou três funcionários. E um pequeno gerador, que já está avariado. A residência oficial, bem como o edifício do governo, haviam sido pilhados durante as incursões rebeldes de Junho. Mas conseguiu pedir emprestadas umas cadeiras de madeira, feitas localmente, para que o nosso encontro pudesse decorrer sentado. Com alguma dignidade.
Com a chuva a bater no zinco, no chão, nas árvores onde vivem os antepassados, os relâmpagos e trovões, a nossa conversa sobre a guerra e a paz acabou por ser feita de um modo patético. Eu a gritar na orelha do Governador, e depois a encostar a minha à boca do senhor, os meus colegas quase a cavalo em cima de nós, para tentar apanhar as palavras e tomar notas. Correu bem, claro.
Vamos fazer sair de Birao, por três meses, os seis políticos mais importantes. São estes políticos que estão na origem das guerrinhas. Das mortes, torturas e misérias. O tempo de ausência será aproveitado para fazer as pazes entre as tribos, as pessoas simples.
Afinal, em Birao, como por estas terras lusitanas, são os políticos que complicam as coisas. Como me dizia o Governador, com o bater da chuva como pano de fundo, cada político só luta pelos seus interesses pessoais. E manipula os outros, com palavras que enfeitiçam o povo.
A chuva podia ter continuado por vários dias, como muitas vezes acontece. Mais uma vez, tive sorte. À tarde, parou.
Estas duas crianças foram das poucas que ficaram em Birao, cidade capital da Província de Vakaga, no Nordeste na República Centro-Africana. Vivem actualmente numa tenda, em situação de grande vulnerabilidade. Uma lona instalada nos terrenos da casa do único Deputado local.
O Deputado transformou o seu quintal num campo de deslocados. É um homem de grande mérito e de uma coragem exemplar. Num canto da propriedade, que está a duas centenas de metros do campo da MINURCAT, a força militar das Nações Unidas que chefio e que tem um destacamento de 300 homens, Togoleses, na zona. A proximidade com o nosso campo tornou a casa do parlamentar um sítio de refúgio.
Vivem cerca de 400 deslocados no interior da sua cerca. Num canto, várias famílias da tribo Rounga. Separados por cinco metros de no man´s land, estão as tendas das famílias Kara. Mais à frente, de novo separados por meia dúzia de metros que fazem a diferença, vivem as famílias da tribo Goula. No extremo do quinta, é a zona dos Haoussas. Cada tribo no seu canto.
O Comité Internacional da Cruz Vermelha forneceu ao Deputado umas centenas de sacos de farinha de milho. Assim se vão mantendo as famílias. Nós fazemos as patrulhas de segurança. No exterior. Pela cidade perdida.
Birao, um centro normalmente cheio de actividade comercial, a cerca de 60 quilómetros da cidade sudanesa de Am Dafok, está moribunda. Mais de 60% das habitações foram pilhadas, queimadas, de seguida. A grande maioria das pessoas fugiu para o mato. O primeiro ataque rebelde foi a 6 de Junho. O segundo, no Domingo, 21.
Estive de visita no dia 25.
Uma desolação. Não há autoridade na cidade. O Governador, o Presidente da Câmara, os funcionários, estão todos em fuga. Cerca de 90 militares do governo mantêm uma certa paz. Mas andam de mão dada com um grupo rebelde, que controla a cidade. Ou seja, tomaram partido, pois esse grupo rebelde é inimigo jurado do que atacou a localidade. São dois grupos, que representam duas tribos vizinhas, que andam numa guerra sem tréguas. Gente pobre armada até aos dentes.
Os rebeldes aliados do governo passeiam-se em Birao como quem anda a apanhar ar fresco à beira Tejo.
Ninguém fala de Birao, por esse mundo fora. Bangui, a capital, fica a cinco dias de viagem por pistas quebra-espinhas. Nem da Vakaga, metade de Portugal em superfície, 38 000 habitantes, muitas árvores, pássaros exóticos e animais selvagens. Um paraíso onde se sofre todos os dias.
O nosso segundo campo, no aeroporto da cidade, a 12 quilómetros do burgo, fica na zona de passagem para o ponto de água de uma manada sem fim de búfalos. Nesta altura do ano, em que a água é muito escassa, os animais transitam todos os fins de tarde pela zona do campo. Convém estar atento, que os búfalos não são animais para brincadeiras. Estes não são como os pacíficos primos que se passeiam por Timor Leste. São bichos bravos a sério.
Como os homens.
Quem sabe onde fica Birao, no mapa, na vida, na morte?